Monteiro Lobato e as obsessões gramaticais de Aldrovando Cantagalo

Monteiro Lobato e as obsessões gramaticais de Aldrovando Cantagalo

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Aldrovando Cantagalo é curioso exemplo da galeria de personagens de Monteiro Lobato. De um modo singular Aldrovando é o mote com o qual Lobato criticou o formalismo e a mediocridade dourada daqueles que pouco ligam para o conteúdo e para as ideias, mas que insistem, com volúpia, na pureza das formas. São os amantes da crase certa, do hífen bem colocado, das mesóclises e das outras óclises. Aldrovando Cantagalo é o caricato gramático do conto “O Colocador de Pronomes”.

Lobato era um rebelde, um cético, um irreverente. No mencionado conto essa posição é bem definida. É a estória de Aldrovando Cantagalo. Os pais de Aldrovando, inventou Lobato, se casaram por causa de um problema com o pronome “lhe”. Isto é, quando o pai de Aldrovando pediu ao avô do personagem uma das filhas em casamento, um uso equivocado do pronome fez com que o pai de Aldrovando se visse constrangido a se casar com a irmã que não queria. O problema estava na beleza, era uma questão de atração estética, ainda que sem a percepção moral e histórica de José, entre Lia e Raquel, por quem por sete anos trabalhou para Labão, como se lê na passagem veterotestamentária.

Um problema estético e platônico que se resolveu negativamente nos planos da gramática, dos pronomes, retos, oblíquos (combinados ou não), reflexivos, de preposições justapostas, que não alcançam problemas de sintaxe e de estilo, e muito menos da órbita dos negócios práticos ou dos estímulos do amor. A mãe de Aldrovando caiu nos braços do pai, por um esbalho pronominal: o “lhe” no pedido de casamento teve como resultado a irmã mais próxima, em detrimento da irmã verdadeiramente desejada. Assim, pelo menos, foi o que decidiu o pai das moças. Nesse caso, não valeu o ditado “Caesar non super grammaticos”, isto é, não se respeitou a suprema lei que nos dá conta de que mais vale a gramática do que a autoridade do chefe. O chefe aqui colocou os pronomes onde bem entendia. Acrescentou-se mais uma norma à regra fundamental das línguas, que é a lei do menor esforço. É por essa lei que falamos “a gente” ao invés de “nós”, conjugando o verbo na terceira do singular.

Aldrovando viveu marcado com o problema do pronome, até porque um pronome mal colocado selou um casamento, e talvez por esse fato é que passou a vida corrigindo erros de gramática, todas as horas, em todos os lugares, em relação a todas as placas e sinais de rua e de lojas, e quanto a tudo e a todos que ouvia. Antes de morrer pretendia deixar uma gramática definitiva, explicando todos os problemas da língua, com o que todos as questões sérias do idioma (e da vida) estariam enfrentadas e resolvidas. Aldrovando salvaria o mundo das impropriedades da língua escrita e falada. Cumpria uma missão. Dedicou sua vida à boa colocação dos pronomes e crases e acentos e desinências. Tinha uma causa.

Já idoso, Aldrovando recebeu do editor os originais desse livro maravilhoso (e necessário) para corrigir. Para seu desespero, verificou que todos os acentos estavam trocados, os pronomes equivocados e toda a ortografia não passava de um interminável engano, por descuido do corretor. O esforço todo resultou em nada. O susto e a desilusão apressaram seu fim. Morreu sem ver seu livro fundamental.

A ironia de Lobato pode ser apreendida com a nota que ele acrescentou ao conto, na primeira edição. Apresentou o espólio do falecido Aldrovando, no qual havia numerosos originais, obras inéditas, de importância superlativa. Havia um estudo sobre o acento circunflexo, em três volumes. Aldrovando deixou um importantíssimo estudo sobre a vírgula no hebraico, que chegava a cinco volumes. Deixou também um valioso texto sobre a psicologia do til, em apenas dez volumes. Lobato registrou igualmente que Aldrovando deixou um estudo valioso sobre a crase, em dez volumes. Muita cultura, muita erudição. Segundo Lobato essa obra toda, importantíssima, pesava, “por junto, 4 arrobas, que renderam, vendidos a 3 tostões o quilo, 18 mil réis.”

Lobato recriminava o excesso de forma e o niilismo do conteúdo. Ao leitor, informou que não sabia do que Aldrovando morreu, e também não importava ao caso. Para Lobato, o que valia era proclamar aos “quatro ventos que com Aldrovando pereceu o primeiro santo da gramática, o mártir número um da colocação dos pronomes”, encomendando “paz à sua alma”.

No universo jurídico há muitos Aldrovandos Cantagalos. Perseguem prescrições e decadências, colecionam conceitos de “naturezas jurídicas” (inclusive o tópico problema da natureza jurídica do cadáver), dividem o tempo todo os bens fungíveis dos infungíveis, farejam dissemelhanças entre decisões constitutivas e declaratórias, entre normas de forma e de fundo, entre efeitos ex-tunc e ex-nunc, entre condições resolutivas, potestativas e suspensivas, erros substanciais, reais e obstativos, nulidades e anulabilidades, a par do relevantíssimo problema das exceções, especialmente de pré-executividade em matéria fiscal, no sentido de que seriam enfrentadas por recursos de apelação ou por agravos.

O Aldrovando Cantagalo do Direito seria talvez o organizador de algumas questões de concurso, que ele mesmo corrigiria, cujos recursos julgaria e sobre cujas vidas decidiria, ou seria quem sabe algum causídico embalado no rubi, sempre contribuindo para a produção de tantos e quantos e muitos outros Aldrovandos Cantagalos que há, e que perambulam pelos fóruns, repartições e cátedras da vida, escolhendo quem vai para a cadeia, dando a cada um o que é seu, redigindo manifestos e pareceres e petições, ensinando os poucos autores estrangeiros que leu (e menos ainda os que compreendeu), dizendo que faculdades são boas ou não, e fazendo justiça, ainda que caia o mundo.

Mas deve haver Aldrovandos Cantagalos em todas as outras profissões também. Bufos e caricatos formalistas mesmerizados pela forma em desfavor do conteúdo os há em todos os lugares. Quando os percebo, lembro-me de um escritor nosso, para quem “o ridículo é uma espécie de lastro da alma quando ela entra no mar da vida; algumas fazem toda a navegação sem outra espécie de carregamento”.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 14/12/2019
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