As Cartas Persas, de Montesquieu

As Cartas Persas, de Montesquieu

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O Barão de Montesquieu, Charles Louis de Secondat, personagem central do iluminismo francês, foi presidente do Parlamento de Bordeaux, crítico do absolutismo e da religiosidade exacerbada e da Igreja Católica. Deixou-nos o “Espírito das Leis”, as “Cartas Persas” e um “Comentário sobre a Grandeza e a Decadência dos Romanos”. Montesquieu admirava as instituições inglesas, especialmente quanto à liberdade civil. Contribuiu para a fixação de Paris como centro da cultura europeia, colaborou para a preponderância da língua francesa na história da cultura. O francês se tornou o idioma franco da intelectualidade do século XVIII.

As Cartas Persas foram publicadas em 1721. No argumento, ao longo dos últimos anos do reinado de Luís XIV, e nos primeiros anos da Regência, dois persas, Rica e Usbek, trocavam inúmeras cartas com correspondentes na Pérsia (hoje Irã), a propósito de animada viagem pela Europa pré-revolução francesa. O conteúdo das epístolas revela crítica corrosiva à França dos Bourbon, numa época de literatos suscetíveis e pedantes, de damas libertinas e jogadoras. É um livro ainda atual e interessante.

As Cartas retomam substrato importantíssimo para a tentativa de compreensão do momento em que foram escritas, e nessa qualidade revelam documentos primários. É um texto de ficção, porém indicativo seguro da época e lugar que o Barão de Montesquieu se propunha a criticar.

Volto ao enredo. Enquanto Rica viajava um eunuco guardava as mulheres de Usbek; este último refere-se àquele primeiro como “o guarda fiel das mais formosas mulheres da Pérsia”. É impressionante o relato do eunuco, que do serralho (harém) insistia que ainda mantinha certo poder; a ambição é relegada à condição de paixão. Paris foi descrita pelos persas, isto é, bem entendido, o próprio Montesquieu explicava a capital dos franceses, sempre ironicamente.

O rei foi apresentado de modo zombeteiro, desafiando-se imagem que soberanos franceses insistiam em difundir, especialmente, no caso de Luís XIV. Consta que houve intenso trabalho para a construção da imagem pública de Luís XIV, especialmente mediante ampla produção iconográfica, a exemplo do mármore trabalhado por Gilles Guérin, que talhou um Luís XIV todo poderoso derrotando a fronda. O Luís XIV das Cartas Persas é outra figura, despida de todo aquele construído que o elevou à categoria de Rei-Sol. O rei, ironizava Montesquieu, contava com “um ministro de dezoito anos e uma amante de oitenta”. Seria possível?

Os jardins do palácio real eram magníficos, havia mais estátuas na área do jardim do que habitantes em cidade populosa... Autoridades eclesiásticas não foram poupadas. Montesquieu referia-se ao papa de modo também sarcástico. O anticlericalismo é traço característico no pensamento iluminista. Dito de autoria incerta dava conta de que a felicidade reinaria na face da Terra quando se enforcasse o último rei nas tripas do último padre...

Montesquieu mirou vários pontos da estrutura eclesiástica, e a crítica aos bispos era contundente. Mencionou a Inquisição e o costume de se presumir a culpa de todos os acusados. Na Europa se acreditava que os homens seriam maus por natureza... A crítica contra o modelo tributário fora também muito sutil. Observou o autor da carta que “tão caro está o vinho em Paris com os impostos com que o gravam, que parece têm intuito de obrigar a que executem os preceitos do divino Alcorão, que veda este licor”. Muita ironia. Em linhas gerais, Montesquieu insistia que necessidades reais de contribuintes não poderiam ser exploradas em nome de necessidades imaginárias de governantes.

Montesquieu mostra-nos que os viajantes zombavam dos costumes europeus, do modo de vida e, em especial, há excerto referente às mulheres, de autoria atribuía a Usbek, e endereçado a Roxana, que ficara na Pérsia: “Se te houvesses criado neste país, não terias ficado tão perturbada. Aqui as mulheres perderam todo recato; apresentam-se aos homens com a cara descoberta, como se quisessem solicitar a sua própria derrota; seguem-nos com os olhos; veem-nos nas mesquitas, nos passeios e nas próprias casas, e não conhecem o uso de se servirem de eunucos. Em vez da nobre candura e do pudor amável que reina entre vós, vê-se nelas um brutal despejo, a que não é possível a gente acostumar-se”. De algum modo, Montesquieu dava início a uma literatura que opõe mulheres da cultura muçulmana a mulheres ocidentais, insistindo-se na liberdade dessas últimas. Será que os fatos confirmam as versão?

Os viajantes persas perceberam a luta de classes, anunciando-se agudo conflito que conduziria à Revolução Francesa. Nesse sentido, os persas de Montesquieu captavam o que de mais grave se vivia na França, então um vulcão quase pronto para entrar em erupção. Montesquieu criticou sociedade francesa de seu tempo, especialmente alguns grupos da nobreza, que se fechavam nos salões, que abrigavam discussões intermináveis, onde desfilavam figuras extremamente vaidosas.

O papel satírico que as Cartas Persas desempenharam indica o desencanto de seu autor para com o Estado e as instituições de seu tempo. É um livro de crítica e de ironia. Montesquieu acreditava que rindo se castigam os costumes, e que a comédia é algo sério. Tudo muito atual.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 03/01/2020
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