Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto

Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O escritor Lima Barreto é um injustiçado. Um triste visionário, na percepção de recente biografia lançada pela historiadora e antropóloga Lilia Maria Schwartz. Um homem do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação para escrever romances ao mesmo tempo sociais e introspectivos, na alusão de Gilberto Freyre. Lima Barreto viveu em contexto de frustração, de falta de reconhecimento, de preconceito racial, situações existenciais que talvez o induziram ao alcoolismo, que o levou à morte, no mesmo hospital onde seu pai estava internado, pela mesma razão, morrendo os dois — pai e filho — com a distância de alguns dias.

O Triste Fim de Policarpo Quaresma é provavelmente seu livro mais conhecido. Penso que é um Dom Quixote nacional. O Policarpo é um idealista, que acredita no país, mas que não se dá conta de que tudo e todos desdenham qualquer projeto nacional sério e genuíno. Lima Barreto opôs com o Policarpo as propostas formalistas e europeizantes da época, centradas em autores como Gustavo Barroso, Alberto Torres e Coelho Neto. Queriam fazer do Brasil um apêndice da Europa. É a velha imagem do índio de Alencar, um europeu de tacape e sunga.

Nacionalismo, patriotismo, eleições a bico de pena, loucura, bacharelismo, preconceito, burocracia e injustiça são os temas centrais desse fascinante livro. A injustiça é recorrente nos livros de Lima Barreto.

A elite imaginava um Brasil asséptico, que não refletia a imagem que visitantes faziam de nós, a exemplo dos relatos colhidos nas expedições estrangeiros que se aventuraram pela Amazônia. Pensavam em um país de brancos, com alguma coisa de exótico, e com constante imitação do que se fazia na Europa.

Nacionalista, ufanista, preocupado com as coisas do país, o Policarpo queria falar tupi, deixar de lado o português, símbolo linguístico de interferências externas. Policarpo é referência da presidência Floriano Peixoto, o marechal de ferro, que o romance descreve como o verdadeiro ditador que foi, ainda que Policarpo demorasse a acreditar.

A descrição da biblioteca do Policarpo é memorável. Na ficção, havia unicamente autores nacionais: Bento Teixeira, Gregório de Matos, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, José de Alencar, Macedo, Gonçalves Dias. De nossa história, tinha todos os livros até então publicados. Possuía relatos de viajantes estrangeiros que descreviam o Brasil. Possuía livros subsidiários, como dicionários, manuais, enciclopédias, compêndios, que consulta constantemente, nas partes em que tratavam do Brasil. A biblioteca de Policarpo bem poderia ser a própria biblioteca de Lima Barreto, descrição que aponta gostos e tendências do tempo retratado.

O enredo é muito bem pensado. Policarpo era um major, mas não era um major necessariamente do Exército, onde trabalhava como amanuense. Uma junta militar o julgou incapaz para as forças armadas. Empregou-se então na burocracia do Exército. Era patético, cômico, suburbano. Seu nacionalismo era ridículo, seu apego para com tudo o que fosse brasileiro é indício de destempero mental. Atemorizado por insetos e saúvas, Policarpo representava um progresso inexistente.

O patriotismo era seu traço marcante. Desde os 20 anos o amor à pátria o tomou por inteiro. O Policarpo era um estudioso do Brasil, de nossas coisas, de nossa história, de nossas riquezas. Estudava a língua dos índios e a literatura indianista. Não admitia que o Rio Nilo fosse mais extenso do que o Amazonas. Amputava alguns quilômetros do rio africano para comprovar sua tese. Acreditava que precisávamos de pouco tempo para nos igualarmos à Inglaterra, em riqueza e progresso.

Um inusitado requerimento de Policarpo fora dirigido à Câmara. Ele pretendia — simplesmente — que se abandonasse o português e que se adotasse o tupi como língua nacional. Essa inusitada solicitação chamou a atenção de todos. Passou a ser ridicularizado, era então assunto de jornais, e de todo tipo de comentário maledicente. A situação era constrangedora, abalando-o; a exposição ao público era transtorno.

Na repartição onde trabalhava tornou-se motivo de pilhéria e de irritação, que revelava a falsidade e a pequenez da vida burocrática. Redigiu um ofício em tupi em enviou ao Ministro. Pretendia organizar um código de relações, de cumprimentos, de cerimônias domésticas e festas, com base nos preceitos adotados pelos tupis. Propunha que chorássemos quando nos cumprimentássemos. Era assim que os tupinambás faziam. Por isso, questionava por que apertávamos as mãos, um costume importado. Lima Barreto parece descrever a repartição na qual trabalhava, ambiente que talvez contenha um pouco de todas as repartições onde se deixam vidas e sonhos.

A origem do Policarpo era confusa, ainda que indubitavelmente brasileira. Pretendia mudar o Brasil, colaborar com as alterações que se faziam necessárias, sugerir, agir; era chegado o momento de se reconhecer a força de nosso país. Por causa da insistência em utilizar o tupi como língua nacional, suspeitou-se que ele era louco.

Aposentado por invalidez, Policarpo foi viver em seu sítio, entusiasmando-se pela agricultura, dedicando-se com toda intensidade, como intensamente fazia tudo na vida. Começava vida nova, com paixão. Tudo planejava. Inventariava. Classificava. Lia furiosamente. Estudava botânica, zoologia, mineralogia, geologia. Desentendendo-se com os poderosos locais, enfrentando as saúvas e as dificuldades de produzir no Brasil, o major retornou para o Rio de Janeiro.

Queria combater ao lado do marechal Floriano Peixoto, na Revolta da Armada, quando a Marinha se opôs ao presidente. Policarpo tornou-se carcereiro na ilha na qual os revoltosos eram mantidos presos. Indignou-se contra a aleatória escolha de 12 presos que seriam executados. Enviou uma carta ao presidente, o que resultou em seu indiciamento como traidor, e a condenação à pena de morte, o seu triste fim, como triste também foi o fim de Lima Barreto, morrendo logo depois do próprio pai, quando ambos se encontravam internados num hospício, vitimados pelo alcoolismo.

É um triste fim, como tristemente querem que terminem todos os sonhos. Ainda que, insisto, não há nada que sonhar nos impeça.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 02/02/2020
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