Autopsicografia, de Fernando Pessoa

Autopsicografia, de Fernando Pessoa

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Escrito em 1931 e publicado em 1932, o poema “Autopsicografia” é um dos mais conhecidos de Fernando Pessoa. São três estrofes com quatro versos cada (quarteto). Têm-se rimas cruzadas, um verso ressoa não no verso subsequente, porém, no seguinte ao subsequente. O poema é uma típica redondilha, formada com versos de sete sílabas.

Os versos iniciais revelam (ou podem revelar) o que Pessoa pensava dele mesmo, como poeta: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. Uma provável chave interpretativa encontra-se no substantivo masculino fingidor, que nos remete àquele que finge. O fingidor é quem oculta sentimento ou pensamento. O fingidor é um dissimulado. Esse conjunto de significados é negativo, no sentido de que o leitor apressado desconfie do poeta e da própria poesia. A poesia seria, nesse passo, o reino da não-verdade ou, metaforicamente, do encantamento. Menos pior esse último.

A ninguém me parece, no entanto, que se perceba a poesia dessa forma. E muito menos que se perceba Fernando Pessoa desse modo. Uma alternativa seria encontrarmos em Fernando Pessoa o limite do uso das técnicas de identificação e de dissimulação. É um disfarce, que pode se confundir com o fingimento, tanto no sentido literal quanto em sua dimensão teatral.

Sua vasta obra (cerca de 30 mil papeis, na expressão de Cavalcanti Filho) acende quase uma centena de heterônimos. Destacam-se entre eles Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, com personalidades, origens, ambiências e experimentos imaginários distintos. Um deles é bucólico (Caeiro), outro é obcecado com o mundo greco-romano (Reis) e um deles é tiete do porvir: Álvaro de Campos, um futurista. E os heterônimos se veem e se definem mutuamente. Há, por exemplo, o Alberto Caeiro visto por Ricardo Reis, que também é visto por Fernando Pessoa. Todos se conhecem.

Há suspeitas de que alguns podem - - de fato - - ter vivido fora da prosa e dos poemas de Fernando Pessoa. Tiveram existência real; ou, pelo menos, há muita semelhança, real ou também fantasmagórica. Cavalcanti Filho teria encontrado um Antonio Joaquim Caieiro, farmacêutico, que teria atendido em Lisboa, por volta de 1922, na Avenida Almirante Reis-108-D. Constatou-se a existência dessa repetição de Alberto Caieiro em um farmacêutico da época, ainda que Antonio, e não Alberto.

Há em Fernando Pessoa uma gênese e uma justificação da constante heteronímia. Há uma consciência da pluralidade. Escreveu Pessoa que quando falava com sinceridade, não sabia com qual sinceridade falava. Via-se como um variante outro de um eu que não sabia se existia. Escreveu que sentia crenças que não tinha. Escreveu que se sentia múltiplo, e que era “como um quanto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”.

Em 1930 Pessoa havia publicado um texto explicando alguns dos heterônimos. Revelou que nunca teve apenas uma só personalidade, e que nunca havia pensado, nem sentido, se não dramaticamente, numa pessoa ou personalidade suposta. Conta que conseguia viver dentro dele mesmo várias personalidades.

Creio que seja habilidade que traduza o fingimento que Pessoa se refere nesse lindo poema. O heterónimo distancia-se do pseudônimo, na medida em que é poético e reconhecido. Pseudônimos e heterônimos são alargamentos da personalidade, dilatam a potencialidade criativa, afrouxam restrições e liberalizam possibilidades de invenção. Juridicamente, no contexto dos direitos de personalidade, o Código Civil tutela o pseudônimo, protegendo-o, quando adotado para atividades lícitas (art. 19). Há exemplos históricos em Gabriela Mistral (Lucila Godoy Alcayla) em Di Cavalcanti (Emiliano de Albuquerque Melo) e em tantos outros. O nome do Cazuza, do Barão Vermelho, por exemplo, era Agenor de Miranda Araújo Neto.

A heteronímia distancia-se do mero pseudônimo, ainda que dele seja uma manifestação, na medida em que oportuniza a expansão da criação literária, em oposição ao mero pseudônimo, que camuflava a autoria, ainda que por todos conhecida. É o caso de Machado de Assis, que assinou crônicas como Dr. Semana, ou como Gil, contos e avulsos como Sileno, como Victor de Paula, críticas como Platão, crônicas em forma de poesia como Malvolio, entre tantos outros. Pseudônimos eram muito usados em polêmicas intelectuais, comuns na segunda metade do século XIX.

Pessoa continua o poema com foco então no leitor. É porque os que leem o que se escreve, na dor lida sentem bem, não são as duas que ele teve, mas só a que eles não têm. E assim, continua, nas calhas de roda gira, a entreter a razão, esse comboio de corda, que se chama coração.

O coração, assim entendo, é um trenzinho de corda. Dá voltas, gira, avança, retorna, e provavelmente para de rodar quanto, também metaforicamente, a criança não quer mais brincar, ou o coração não quer mais amar. O coração é um mimado. Ama quem não pode. Mas ama. Muito mais do que pode.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 02/02/2020
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