Poliarquia, de Robert Dahl

Poliarquia, de Robert Dahl

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

A literatura da ciência política tem acompanhado (e se assustado) com o cenário que se contempla em 2020. Poucos previram esse panorama. Multiplicam-se ensaios explicativos, a exemplo de recente livro de David Runciman, “Como a Democracia chega ao fim”. Uma interessante hipótese de trabalho seria uma revisão bibliográfica de autores cujo legado desdobra-se com o fim da guerra fria, no sentido de se averiguar, com o benefício do retrospecto, se há nesses autores alguma pista relativa ao que vivemos hoje. Sugiro, como ponto de partida, Robert Dahl (1915-2014).

Trata-se de importantíssimo cientista político norte-americano que lecionou na Universidade de Yale. A democracia foi o tema central de suas preocupações, intervenções e opiniões. Poliarquia é um de seus livros mais importantes. Concentrado nos aspectos mais empíricos da democracia, isto é, na dimensão real da ideia democrática, Dahl argumentou que as democracias contemporâneas seriam caracterizadas menos por uma imediata participação popular, e mais pelo controle que grupos exercem sobre líderes políticos e centros de decisão. A essa pulverização de influências Dahl denominou de poliarquia.

Para Robert Dahl, nas poliarquias há eleições livres, que ocorrem regularmente. A competição eleitoral é regulada. Verifica-se amplo controle sobre o processo de escolha de representantes. O direito ao voto é universal. Não há limites de gênero ou de expressão censitária. Na percepção de Dahl, na poliarquia o direito de concorrer a cargos públicos é universal. Do ponto de vista formal, não há problemas.

Nas poliarquias, ao longo do processo eleitoral tem-se o direito de livre expressão, quanto a questões relevantes para a sociedade. Não haveria tabus ou proibições; tudo pode ser debatido. Nesse contexto, haveria também possibilidade para que o eleitor buscasse fontes alternativas de informação. Registra-se a importância, no mundo contemporâneo, do uso de meios cibernéticos de informação. Espera-se uma salvação. Multiplicaram-se as milícias digitais.

A rede mundial de computadores poderia se revelar grande aliada de iniciativas democráticas, situação já anunciada por Manuel Castells, teórico catalão que às vezes nos parece o Max Weber de nossos dias. A romântica imagem das democracias diretas, que supostamente floresceram em Atenas no século IV A.C., poderia se realizar no mundo contemporâneo, mediante simples toque em aparelhos celulares de uso cada vez mais difundido e acessível. Isto ocorreu. Os resultados são assustadores.

Nas poliarquias haveria também o direito de livre associação. A poliarquia nos remete a um modelo imaginário de democracia procedimental. A inclusão de todo cidadão se desdobraria na igualdade do voto, na possibilidade de uma efetiva participação em fóruns de decisão, por intermédio, inclusive, da compreensão do andamento do processo eleitoral e das fórmulas de escolha. Do ponto de vista procedimental o modelo democrático se desdobraria com pequenas nuances de imprestabilidade. Insisto, do ponto de vista formal não há indícios de quaisquer irregularidades.

O núcleo do conceito de Poliarquia consiste na compreensão de que grupos de interesse participariam organizadamente da competição eleitoral e alcançariam os vários nichos do poder. Algo parecido com a teoria da captura (que em direito administrativo nos dá conta de situações nas quais os regulados tomariam conta das agências reguladoras) ocorreria de um modo mais amplo: o governado tomaria o governo.

Tudo muito natural, isto é, se lêssemos o mundo e as coisas da vida de um modo ingênuo: seríamos todos autores de broquéis e siderações, poetas simbolistas perdidos num contexto real, parnasianos obcecados com vasos gregos e com métricas perfeitas. A realidade é outra. No pano de fundo da discussão, a revelação de que vivemos uma brutal desigualdade econômica que pauta uma absoluta desigualdade política. No combate a essa ameaça é que mecanismos de controle de governo e de burocratas deveriam ser formulados e de fato realizados. É essa, creio eu, uma das mensagens de Robert Dahl.

No entanto, não viveu o suficiente para ver o que se passa em boa parte do mundo, quando assistimos, com incredulidade, o fim de muitas democracias.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 02/02/2020
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