Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Quantos cegos seriam necessários para que se tenha uma cegueira? Essa parece ser a pergunta que José Saramago nos colocou no “Ensaio sobre a cegueira”, livro tocante, inesquecível, profundo, desafiador. Uma leitura cheia de tensões e surpresas, que nos sugere que muito pouco enxergamos o que ocorre à nossa volta. O problema não é mera questão mecânica que deriva da imprestabilidade de algum nervo óptico.

Não enxergamos porque não queremos enxergar. À visão da realidade, que é injusta e insolente, preferimos a escuridão. É de algum modo uma leitura pessimista da alegoria da caverna. A ironia de Saramago desvia a questão fundamental da cegueira voluntária para a cegueira cromática. A cegueira é a escuridão total? Ou será que a cegueira é branca?

Essa última pergunta também nos é colocada, de forma mais explícita, nessa impressionante narrativa. O problema é inicialmente de solução cromática. É do sinaleiro que surge o primeiro cego. Seguem o falso samaritano, o médico oftalmologista, a rapariga dos óculos escuros, o menino do olho estrábico, o policial, o motorista do táxi, o ajudante da farmácia, a criada do hotel, a empregada do escritório, o rapaz que estava no hotel onde esteve a rapariga dos óculos escuros. O leitor perde a conta. Em algum momento quase todos estão cegos. De algum modo, a cegueira atinge ao próprio leitor.

Excetua-se desse conjunto a personagem mais densa dessa narrativa: a mulher do médico. Raras vezes se vê uma mulher tão forte, na ficção, ou na vida real, ou em ambas, porque ficção e vida real se confundem. A mulher do médico finge o tempo todo que estava cega. Salvou ao marido. Salvou a todos. Salvou a si mesma. Passou pela reclusão, por uma interminável quarentena. Passou pelo dissabor de ver o marido cegamente fazer amor com a rapariga dos óculos escuros. Compreendeu. Mas chorou. Pede que o marido não diga nada. Assim entenderia melhor.

A cegueira se espalhava com a força de uma peste ainda não vista. Um primeiro cego implorava que o levassem para casa. Um falso bom samaritano ofereceu ajuda, mas aproveitou-se da situação para roubar o carro de quem lhe pediu auxílio. Ficou cego também. Um cego é sagrado, não se rouba um cego. O médico também repentinamente ficou cego. De que vale um médico cego, e sem remédios? De que valiam os conhecimentos que um oftalmologista tinha sobre a córneas, escleróticas, íris, retinas, cristalinos, máculas lúteas, para usarmos de expressões técnicas agrupadas pelo narrador. Saramago não escrevia ao correr da pena, era um pesquisador incansável. Como incansável era a rapariga dos óculos escuros, preocupada com o colírio, ainda que cega, totalmente cega.

Há personagens que revelam que todos somos infensos a todas as formas de cegueira. O burocrata que atende ao médico, metade indiferença e metade ruindade. A atuação governamental vai, ao mesmo tempo, além e aquém do necessário. Nada se faz. Tudo se faz. Os cegos (como se fosse uma peste) são confinados. É um manicômio. Havia compartimentos para cegos e havia compartimentos para suspeitos de cegueira.

Publicou-se o regimento do manicômio. As luzes deveriam ficar acesas o tempo todo; inútil a tentativa de se manipular os interruptores, não funcionavam. O abandono do edifício sem autorização seria apenado com a morte. Os internados lavariam manualmente as roupas. Três vezes ao dia seriam depositadas caixas de comida na entrada dos quartos. Todos os restos de comidas deveriam ser queimados. Os internados seriam responsáveis por todas as consequências negativas das queimas. Os bombeiros jamais interviriam.

Entre os detentos desse estranho campo as discussões se multiplicam. Não se distinguia o que era desgraça e o que era fatalidade. Os relógios deixaram de funcionar, e ninguém tinha ânimo de ajustar as cordas. Qual a utilidade disso? Havia excrementos e mal cheiro por toda a parte. O número de internos aumentava, e já não se sabia mais se havia mais gente dentro ou fora dos muros. Um avião caiu em virtude da cegueira repentina dos pilotos. Todas as cegueiras eram repentinas. Os colchões apodreciam porque encharcados de suor e de urina.

Já não havia mais regras (o direito perdeu o sentido). Chora-se por todo o canto, o narrador equipara o choro a uma forma de salvação: morreríamos se não chorássemos. Surge um grupo de cegos que roubava e violentava as mulheres. A mulher do médico foi violentada. Foi sua insurgência que deu início a uma revolta geral. A cegueira, segue o narrador, é viver num mundo no qual a esperança já não mais existe.

Com o fim da comida a mulher do médico se arrisca e vai para as ruas na busca de alimentos. Apavora-se, percebe que tudo está abandonado. Que todos estão cegos e que grupos de cegos vagam na busca de salvação e de alimentos. Tudo está perdido. Sentada, no meio do mais agonizante choro aproxima-se um cão, que Saramago chamará de “o cão das lágrimas”, uma das mais cativantes personagens, em sua obra, e na galeria universal de cães literários. A mulher do médico tocou a cabeça do cão, passou-lhe a mão pelo lombo encharcado e chorou o resto das lágrimas abraçada a ele. Vai protege-la. Era um animal áspero e intratável quando não enxugava lágrimas.

Não revelo o que ocorre em seguida. O leitor deve buscar a resposta nas páginas finais desse fascinante livro. Quem conhece o desfecho da história apavora-se com a condição humana, ainda que essa condição, sabemos, ou devemos saber, seja permanente e ao mesmo tempo latente. Nessa distópica narrativa nos convencemos que todos somos iguais perante o mal. Porque no fundo (e também na superfície) talvez todos tenhamos um bom bocado de maldade.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 16/02/2020
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