Numa e a Ninfa, de Lima Barreto

Numa e a Ninfa, de Lima Barreto

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Numa e a Ninfa, de Lima Barreto, foi publicado originalmente em folhetins no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, em 1915. Entre os romances de Lima Barreto, trata-se provavelmente do que revela uma maior profundidade psicológica. As personagens são bem construídas, há um realismo narrativo indisfarçável, como indisfarçáveis são os aspectos de romain-a-clef que marcam a obra. Esses pormenores escapam ao leitor contemporâneo. Nesse sentido, Numa e a Ninfa é um obra datada. As referências ao caudilho gaúcho José Gomes Pinheiro Machado, por exemplo, são inúmeras. O desfecho do livro é inusitado, chocando o leitor, como se fosse o passo final de um romance policial. O último parágrafo comprova a grandeza de Lima Barreto como escritor. O fim é de mestre.

Muitos dos problemas tratados por Lima Barreto em Numa e a Ninfa são permanentes e atuais. São muitas questões, que o autor enfrenta no mais das vezes de modo satírico. Entre os vários assuntos, o problema da distribuição dos cargos públicos, as críticas ao positivismo, ao bacharelismo, ao judiciário, o problema do plágio (inclusive do plágio dentro do plágio), a hipocrisia institucional que acena com reformas de superfície, o tema da corrupção, a questão dos privilégios militares, a fidelidade partidária (e a conjugal também), os conchavos políticos e um inimigo recorrente em Lima Barreto: a pedantocracia universitária.

Numa e a Ninfa é narrativa linear, feita em terceira pessoa. É a trajetória de Numa Pompílio de Castro, pobre na origem, mas que se esforçou desmedidamente para subir a posição social. Estudou direito, com muito sacrifício, tornou-se bacharel, ocupando uma das mais distintas posições sociais do Brasil no início do século XX. Advogou, foi promotor, juiz de direito (na imaginária Catimbau), chefe de polícia. Casou-se com Edgarda, filha de Neves Gominho, prestigioso chefe político, que garantiu a ascensão do genro. Na imagem de Lima Barreto, Numa era um marido por emprego.

A partir do núcleo, Numa e Edgarda, personagens que traduzem os tipos que circulavam na ordem social e política da República Velha. Numa foi eleito deputado. Era um parlamentar medíocre, lacônico e inexpressivo. Um dia, lendo um discurso (que o leitor supõe redigido por Edgarda, sua esposa) Numa desponta como voz importante do Parlamento. Numa depende da esposa. O apadrinhamento político é do pai de Edgarda, os discursos eram pela esposa redigidos.

Todos gravitam na órbita de Bastos, que é na verdade o político gaúcho Pinheiro Machado. Bastos é temido, de sua opinião dependem todas as opiniões. De acordo com o narrador, Bastos somente se preocupava com as grandes questões. Ao atender os pedidos que se lhe faziam, Numa perguntava se o interessado já havia falado com o Bastos. Era o chefe absoluto e respeitado da política nacional.

A hegemonia do padrinho de Numa, seu sogro, é ameaçada pela ascensão de um grupo rival, o que provoca a cautela de todos, no sentido de quem tenham certeza de que estariam no lado certo, na hora certa. É ao longo dessa estrutura básica que vários pequenos incidentes e derivações enquadram o enredo na velocidade e no charme de um folhetim. Um rol das personagens principais, como segue, permite que se explore essas divagações.

Numa Pompílio é um arrivista, um parvenu que ascendeu com esforço próprio e com as relações que escolheu cuidadosamente. Aproveitou o estado civil para encarreirar-se. Fraco de caráter, era um velhaco oportunista, ainda que esforçado e tenaz. Sua biografia, segundo o narrador, não era interessante, e também não era longa. O pai era um pequeno empregado escriturário de um hospital. Concluiu o curso de direito vivendo pesadas privações; levou uma vida miserável. Não se pode negar alguns de seus méritos.

Enquanto estudou, passava os dias a café e pão, dormia em cima de jornais, mas mostrava-se um aluno interessado, fazia perguntas, esforçava-se para ser visto e notado. Uma vez doutor, seria um “brâmane privilegiado”; deveria esperar o melhor momento para atacar e conquistar uma posição definitiva. No entanto, no íntimo, enquanto aluno, era displicente para com os conteúdos que estudava; verdadeiramente, odiava as matérias. Edgarda casou-se com Numa por falta de melhor opção. Numa era um bacharel, poderiam viver no Rio. Edgarda lia muito, Numa lhe trazia os livros. Habilidosa na escrita, ajudou ao marido, quando deputado, escrevendo-lhe os discursos, ao que se pensa, até o desate do livro. Benevenuto era o primo de Edgarda. Protagoniza papel principal no desfecho da narrativa. Há também Fuas Bandeira, figura importante no enredo, era o direito do Diário Mercantil. Português de nascimento, subiu na vida com um golpe que o revela como um grande traidor. Protegido pelo proprietário do jornal, tomou uma procuração para cuidar dos negócios enquanto o proprietário seguia para a Europa. Aproveitou-se do mandato e tomou para si todos os bens do protetor traído. Como proprietário de jornal será um notável bajulador de políticos. Venal nos ganhos, era generoso nos gastos. Lima Barreto também censurava com alguma recorrência donos de jornais; é o que se vê, por exemplo, nas Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Jornalistas também eram criticados, como João do Rio, também no livro sobre Isaías Caminha.

Entre as personagens secundárias há algumas figuras que merecem alguma digressão maior: Lucrécio Barba-de-Bode, o Doutor Bogóloff, Felicianinho (e sua amante, Dona Alice), a par da viúva de um Lopo Xavier.

Lucrécio Barba-de-Bode é o tipo clássico do assessor do político corrupto, do faz de tudo, e corrupto também é, até a medula. É um tipo desprezível, que vive de vender influências e promessas. Carpinteiro de profissão, foi convencido por uma colega a se aproximar de políticos. Alistou-se como eleitor e começou a trabalhar o grupo do famoso Totonho do Catete. Abandonou o ofício e passou a dedica-se aos chefes políticos, para quem prestava toda forma de favores, lícitos, legais, ilícitos, ilegais, imorais. Não fazia restrições. Adulava. Servia.

Andava armado, entendia das manhas eleitorais, perdeu o medo das leis e das autoridades, auxiliava na soltura dos conhecidos que estavam presos nas delegacias, pedia e levava cartas, de políticos para autoridades, de autoridades para políticos. Vivia de expedientes, sabia dos boatos do Congresso, que acompanhava com paixão. Frequentava a cozinha da casa dos políticos para quem trabalhava. Fazia o que lhe mandavam. Truculento com os pequenos e fracos, era doce e cordato para com os poderosos. Vivia com a esposa, Ângela, em permanente rixa, com o filho (Lúcio), albergava também um hóspede, um imigrante russo, o doutor Grégory Petróvitch Bogóloff.

O russo andou por colônias no interior, onde foi explorado, esgotou-se no trabalho braçal, e buscava a sorte na capital. Lucrécio o convenceu de que tinha pinta de doutor, era europeu, havia estudado e, portanto, deveria explorar a essa situação. Conseguiu ser nomeado para importante cargo no Ministério do Fomento Nacional, improvisando ideias e processos que melhorariam a produção animal brasileira. Defendia um método de criar peixes em seco, conseguiria porcos do tamanho de bois, bois do tamanho de elefantes, criaria gado sem ossos. Tudo científico, garantia.

Felicianinho, com pouco mais de vinte anos, era o protegido de Dona Alice, de quem se supõe amante. Ela orçava cerca de 70 anos, era mãe de Macieira Galvão, importante senador na hierarquia da qual Numa era um subalterno. Era toda ternura com o Feliciano. Caso raro na literatura, no qual a diferença de idade pesa mais para a mulher do que para o homem.

Em Numa e a Ninfa há também a viúva do Lopo Xavier. Vivia atrás dos poderosos na espera de um montepio, ainda que destinatária de herança que permitia que pudesse viver bem. Edgarda, que era realista, após o esposo receber a visita da viúva, que pedia ajuda para receber uma pensão, lembrou que havia na fila uma viúva de um bombeiro, que morreu combatendo um incêndio.

Numa e a Ninfa é uma pesada crítica aos vícios e costumes da política, da burocracia e da sociedade brasileira do início da República Velha. Por exemplo, logo no início do livro discute-se a criação de um novo estado na federação. Os cargos que seriam disponibilizados atiçavam os políticos interessados nessa nova unidade federada. O objetivo da criação desse novo estado era apenas atender demandas de apadrinhados políticos. Não se tratava, em nenhum momento, de qualquer atenção para com qualquer forma de interesse público.

O desprezo oficial para com a população era regra entre os políticos que circulavam no grupo de Numa. Quando se discutia o problema de uma estrada, alguém sugeriu que se sentisse o que pensava o povo. Respondeu-se que o povo nada tinha com essas questões, que não era capaz de raciocinar sobre finanças. Tem-se uma total separação entre demandas populares e atuação parlamentar ou governamental.

Lima Barreto continua suas críticas a Floriano Peixoto (centro do Triste Fim de Policarpo Quaresma), lembrando que o governo do marechal de ferro era o regime da irresponsabilidade. O narrador lembra uma passagem, em tom de anedota, que ilustra essa premissa. Na voz do narrador, conta-se que Floriano Peixoto precisava de uma dotação orçamentária. Esta foi negada por seu ministro da fazenda porque inconstitucional. Em seguida, Floriano pretende que o presidente do Tribunal de Contas autorizasse a transação. Com a negativa, Floriano convocou o ministro da corte de contas e, pessoalmente, tentou dissuadi-lo.Ante mais uma negativa, desculpou-se, observando que cometeu um equívoco. Não era com o presidente do Tribunal que queria falar, era com seu sucessor. O presidente foi noticiado de que foi aposentado, um dia antes. No dia seguinte, publicou-se, no Diário Oficial, a exoneração do presidente do Tribunal. Floriano tratará do assunto com o sucessor do jubilado.

O tema do racismo também não é deixado de lado. O narrador menciona que os pretos irritavam visitantes e diplomatas. Em Lima Barreto era comum a associação entre a diplomacia e práticas supostamente eugênicas de eliminação dos africanos. Destilava sua oposição às políticas do Barão do Rio do Branco, que, a seu ver, recrutava brancos, e de preferência com olhos azuis, para os postos de nossa diplomacia. É um assunto que tratou com exaustão na República dos Bruzundangas.

A burocracia ineficiente era lembrada com passagem satírica em que se descreve o Doutor Xandu, ministro do Fomento Nacional. O ministro se queixava que, em um só dia, teria assinado 1.557 decretos, 78.345 regulamentos, 1.725.384.671 avisos, um trabalho insano... Para esse mesmo Doutor Xandu os problemas nacionais decorriam de mera constatação determinista. O que nos atrelava ao atraso era o calor e o clima tropical. Segundo esse importante ministro, “o que nos falta é o frio”. Afirmava que tinha em sua casa uma câmara frigorífica onde se trancava toda manhã. Pensava em instalar câmaras de frio em todas as escolas, queria dar atividade aos rapazes do Brasil. O frio, para essa eminência, era “o elemento essencial às civilizações”.

Avaliados no momento em que a obra foi composta, meados da década de 1910, percebe-se uma arguta observação. Lima Barreto é um historiador de seu tempo, produzindo imenso material para análise histórica, que metodologicamente pode ser considerado como uma fonte primária.

É um analista inserido no contexto. Funcionário público, captou as nuances da vida burocrática, as expectativas, as articulações, as aspirações, bem como esse conjunto de comportamento era explorado pela elite que mandava. Também nos revela como os detentores de cargos públicos percebiam-se como cidadãos de classe privilegiada, tal como se fossem membros de uma casta intocável. Não admitiam, por exemplo, qualquer hostilidade ou movimento contrário à acumulação de cargos. É um livro de militância apaixonada. É uma denúncia de privilégios, injustiças, infidelidades, violências e conchavos.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 24/02/2020
Código do texto: T6873002
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