Tangerine-girl, de Raquel de Queiróz

Tangerine-girl, de Raquel de Queiróz

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Ainda na década de 1990, no programa Roda-Viva, da TV Cultura, Caio Fernando Abreu iniciou uma rodada de entrevistas com Raquel de Queiróz com uma curiosa provocação. Lembrou que quando era garoto seu pai não gostava que lesse as crônicas de Raquel de Queiróz, porque era uma autora de esquerda. Lembrou que mais tarde, quando estava na faculdade, os colegas o repudiavam por ler Raquel de Queiróz, que reputavam como uma escritora de direita. Esquerda ou direita? Essa pergunta que Caio Fernando lançou para Raquel. A escritora cearense saiu da cilada (era parente de Castelo Branco) observando que era independente, e que tinhas ideias próprias.

Esquerda ou direita, porque às vezes esquerda, e às vezes direita, Raquel parece ter a mais inesperadas saídas para as mais esperadas apertadas. Exemplifico o meu argumento com a relação de Raquel com a presença norte-americana no Brasil ao longo da segunda guerra mundial. É o que sentimos com a leitura do deliciosíssimo conto “Tangerine-girl”.

Era uma menina, ruiva, que morava perto da base aérea dos norte-americanos. Devia ser bonita, de acordo com a descrição da narradora. Percebia nos céus, em voo rasante, uma aeronaval. Não era um zepelim, era uma coisa grande chamada de “blimp”. Ela não pensava em andar no avião, como não se pensa em cavalgar uma águia ou nadar das costas de um golfinho, segue a narradora. Não reconhecia quem estava na aeronave, via pequenas imagens, cabeças minúsculas.

Conta a narradora que, um dia, após o café da manhã, a menina sacudia a toalha da mesa, no quintal, livrando-se das migalhas do pão. Naquele momento a aeronave sobrevoava a casa da menina. Teve-se a impressão de que ela agitava uma bandeira branca. Foi nisso que acreditaram. Ela agitava a toalha exatamente como alguém agitaria uma bandeira. Era a menina do laranjal. Uma plantação de laranjas circundava sua casa.

Os aeronautas queriam atirar uma flor. Mas não havia algo semelhante na aeronave, era um dirigível da marinha norte-americana. O soldado jogou uma caneca prateada, que na verdade tinha um furo de bala. Na caneca a menina leu a mesma inscrição que havia no dirigível: U.S. Navy. Acenou com a toalha, alegre, muito alegre, agradecendo. Havia já saudades mútuas ainda que, para Raquel, os americanos não contavam com uma palavra que expressasse esse sentimento.

A cena se repete. Estabelece-se um ritual matinal. Para a narradora, tinha-se um namoro entre um gavião e uma gazela. Mais presentes eram jogados: as revistas Time, Life, um gorro de marinheiro, um lenço de seda vegetal perfumadíssimo, que ao cair, segundo a narradora, mais parecia um papagaio de papel. No entanto, a caneca era o mimo que a menina mais gostava. Fora primeiramente um porta canetas e lápis. Transformou-se em um vaso de flor. A menina esmerou-se no estudo do inglês. Via filmes. Tentava caprichar na pronúncia. Equiparava o soldado (que nunca vira) a um galã, Clark Gable, por exemplo.

Porém, não se tratava de um marinheiro. Trocava-se de turno. Havia vários marinheiros. A menina tornou-se uma tradição no cotidiano daqueles homens. Foi apelidada de “Tangerine-girls” por interessantes razões que Raquel de Queiróz explica no conto.

Um dia, jogaram um bilhete. Era um convite para um baile dançante. A menina penteou-se, vestiu-se, arrumou-se. Chegando na festa, não viu um marinheiro (o que sonhava). Viu vários marinheiros. Procurava o namorado apaixonado, mas ele era muitos. Percebeu-se uma namorada coletiva. Magoou-se. Assustou-se. Correu para casa. No quarto, segue a narradora, mordeu o travesseiro e chorou as lágrimas mais amargas e mais quentes que tinha nos olhos. Nunca mais saiu para ver o avião. Intrigados, os soldados continuavam jogavam presentes, que os meninos pegavam.

Há nesse conto de Raquel de Queiróz um distanciamento rápido entre euforia e tristeza, mediados pelo desconhecimento das situações. Percebe-se na menina uma grandeza latente. Talvez, um tipo daqueles que sabe que para sermos grandes precisamos amar a solidão.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 09/03/2020
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