A pureza e a beleza do cinismo: O Satã maravilhoso de Mark Twain.

Uma resenha de "O estranho misterioso" - (1916- obra póstuma)

Em 1490 em uma aldeia do interior da Áustria, três meninos conhecem um ser fantástico, capaz de manipular a natureza e realidade com truques mágicos e leitura de pensamentos. Este ser é nada menos que Satã, um sobrinho do próprio tinhoso que visita a terra para observar as 'estranhezas" dos homens e da humanidade dita civilizada e ironizar os fatos com a sua onipotência.

Theodor (o narrador), Seppi e Nikolaus acabam tendo em satã um amigo que vai cada vez mais mostrando a sua essência desprovida de dualidades humanas como bem e mal ou sorte e azar. Não se preocupa com o tempo ou com as demais temeridades dos homens: morte, dor, vergonha, aparência...

É um texto que nos deixa logo toda a presença do fantástico e que não causa estranheza aos meninos exatamente por ainda não terem formado em suas consciências o que seria irreal ou absurdo (estamos em tempos onde mulheres e crianças eram queimadas como bruxas), e as mágicas de Satã assim como a sua presença, indicam que as únicas horas onde o ser humano realmente pode ser feliz é quando não questiona ou esconde seus atos e aceita o momento sem convenções morais ou com medos dessa natureza.

Pode-se dizer que Satã é uma alegoria para três elementos aqui: Ele é a natureza do ser, o racionalismo crú e a luta entre a crença e a desilusão.

Ele não age de forma premeditada e não deixa de dar escolhas aos personagens. Suas ações, podem todas elas ser diferentes por parte de quem as toma no caso que for e a consequência delas apenas apressa ou retarda o inevitável fim. Não importa o que se faça, sempre a ação do curso natural se sobreporá ao lógico.

Pode ser tomado como um raciocínio lógico em tudo o que acha dos seres humanos e é cínico porém de uma forma devastadora real. Mostra que para os humanos os seus sentimentos sempre embasados em sociedade ou convenções destroem mais do que unificam, é uma razão que o torna (por ser a natureza do ser ) irônico com os homens, ri deles pois conhece suas intenções e as repugna, de modo a fazer parecer crer que não acredita na civilização. Más é um equivoco esta leitura, em verdade, o que o Satã quer passar é que o ser humano nunca utilizou das evoluções da sociedade para buscar uma felicidade verdadeira e sim para segregar cada vez mais com guerras, racismos, diferenças econômicas. O que torna toda esta tentativa de se viver em sociedade inútil para os motivos que se alega ser necessária. A sua razão crua é a do descrente no ser humano e que indica preferir os seres sem a "racionalidade social", que apenas vivem e fazem o que é preciso, sem se preocupar com convenções. Que vivem com honestidade integral.

E aqui há ainda o fator dessa racionalidade de Satã que despreza até os sentimentos que achamos puros porém foram inundados de hipocrisia pela convenção social:

A velha que será queimada: prefere morrer a viver pois sabe que estará condenada pela sociedade e sofrerá mais pela falta de apatia;

A jovem Marget que possui algumas fraquezas humanas más a maior é a do seu conceito de amor que é Basear seu sentimento em oportunidades e se induz pela aparência e momentos fúteis;

O cão açoitado até quase morrer que verdadeiramente perdoa sem mágoas ou julgamentos;

E A situação dos jovens de serem incapazes de enfrentar a realidade por causa da compaixão e se tornarem egoístas e mesquinhos.

Então entramos em crença e desilusão que estarão presentes ao terço final do livro. Satã entrará em um debate com o narrador sobre esta separação das coisas em que se acredita e no que são. Praticamente diz que crenças ( sejam religiosas, nos outros ou no futuro) estarão sempre nos acompanhando porém sempre nos levarão à mais profunda desilusão. Não importando que saibamos ou não que isto ocorrerá.

É quase como se o Satã fosse o próprio Twain em sua forma de ver a humanidade como espécie.

Outra visão sobre a obra e sua caminhada é a de que tudo está determinado, sim é uma obra que acredita em destino porém com uma visão inacabada deste: A natureza do ser (Satã) é capaz de modificar o rumo com uma intervenção simples e mudar todo o caminho más não o destino (morte). O indivíduo pode por uma escolha sofrer muito ou deixar para trás o grande algo e dela mudar todo o porvir, essas escolhas não mudam o fato de que "os tijolos cairão do momento em que se nasce até a morte".

E há um detalhe que poderia ser contestado nessa resenha: Ocorrem intervenções mágicas de satã durante o livro, porém todas elas, da bolsa de ouro ao julgamento e o que ocorre após são vontades dos meninos e que apenas no final do livro se haverá o entendimento do que ocorreu ali e é surpreendente.

É uma obra que transita por aspectos de Irmãos Grimm em suas cenas fantasiosas e de caráter desiludido com tudo o que se pode ser chamado de esperança.

Deus, o futuro, os humanos, nada merece ser respeitado ou levado a sério. Apenas o próprio ser e seu interior.

A obra é um compilado de três textos e por isso não há uma coerência firme em sua narrativa.

Possui algumas falhas notórias de temporalidade por exemplo. E a que mais vai incomodar quem é perceptor de inconsistências é realmente o das situações e objetos ou explicações técnicas de Satã.

Muitas vezes o cenário nos confunde, estamos em uma aldeia de um Duque no interior da Áustria com uma pequena igreja, porém a presença de urbanização e educação não condiz com a primeira descrição de que estava atrasada intelectualmente e de que o povo em geral era ignorante contrasta com a noção de tecnologias.

Não é difícil em todo o texto termos por exemplo relógios que eram algo extremamente raro e que para pessoas comuns, seria impossível terem o contato com tais com tamanha facilidade (os relógios não eram ainda tão difundidos em todos as casas. Apenas em 1590 foram inventados relógios portáteis e apenas em 1670 surgiram os ponteiros de minutos.

Tal mostra deságua em Satã. Explica que a luz do Sol leva oito minutos para nos alcançar, e percorre 150 milhões de KM. Se o texto tivesse sido mais trabalhado, com certeza esta parte teria sido melhor posta, com uma maior cautela em mostrar que se estava falando de conceitos que á época medieval não seriam naturais a um menino que sequer teria a percepção de grandeza do feito. (o conceito de minutos era para a maioria desconhecido, quem dirá o de distâncias tão longas em unidades de medida). E outros detalhes também prejudicam a coerência tais como uma quantidade de mil moedas de ouro nas mãos de qualquer plebeu, isso causaria uma batalha geral. Talvez nem os nobres tivessem tal quantia de maneira tão banal. O autor teria de certo revisto este detalhe.

Nada apaga a ideia da obra, porém prejudicam-a sensivelmente em relação a o que dizem (nunca li) em comparação a outras obras clássicas do autor.

Sabe-se que o texto foi muito mexido, a edição que eu li informa que o astrólogo não existia nos três contos originais e foi introduzido para ser um vilão mais palpável. Assim, fora a contextualização do próprio Satã, é impossível saber qual rumo teria o enredo final e revisado de Twain

Essa visão de um anjo como ser que não possui sentimentos além do concreto e que ignora qualquer ambiguidade pondo simplesmente para nós que "É O QUE É" é muito indigesta de aceitar, por isso vemos nesse Satã um ser arrogante porém se aprofundarmos os olhos, teremos a exata visão de nós mesmos: Não aceitamos que estrangeiros ou pessoas de fora de nossos núcleos nos critiquem sem os acharmos soberbos mesmo que tenham razão. Veremos que na visão do autor, a civilização humana tão racional não difere de um terremoto ou de um furacão.

Por sua natureza destrói e é inevitável.

Por isso Satã tanto a observa.

Afonso Ribeiro jr
Enviado por Afonso Ribeiro jr em 26/03/2020
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