A FILHA DE MRS. DALLOWAY - romance de Vanessa Maranha

Antes que meu comentário cause dubiedade afirmo que li e gostei muito de A FILHA DE MRS. DALLOWAY, romance da escritora francana Vanessa Maranha. Costumo dizer que odeio Proust por ele reconstruir labirintos perfeitos com fluxos de consciência em narrativas que beirão a perfeição; suspeitava sentir o mesmo ao ler

A FILHA DE MRS. DALLOWAY.

Confirmando minha suspeita depois de umas 10 páginas, desisti da busca por limites conhecidos para pautar a obra - entre São Paulo e Londres, as molduras usuais de tempo e espaço que podem facilitar a condução da leitura estabelecendo velhos parâmetros conhecidos não fazem sentido, a experimentação com a linguagem nessa narrativa “liquida” subverte esses e outros limites.

Vanessa rompe na história que fragmenta milimetricamente não só as estruturas entre ficção e biografia, romance e memória, como também torna difusa a percepção do que seja linear – o fato, ou a cadeia de eventos, parece não importar para o desenvolvimento da narrativa, e esse “parecer não importar” talvez seja um dos motores que impele o olhar mais para dentro das próprias estruturas narrativas, da vida como ela é, das referencias literárias (Virginia Wolf e Freud são quadros permanentes em todos os fragmentos) e dos próprios fragmentos que se encaixam de maneira extraordinária quando à primeira leitura parecessem desconexos.

Aos poucos, a familiaridade com o fluxo de consciência da narradora acalma, ora num ambiente vagamente conhecido ora permanentemente seu, o leitor se encontra – eu me reencontro - dada a pertinência da identificação com as análises e reflexões minuciosas de situações íntimas que, destarte se referirem a princípio da vida aristocrática, resvala na ascensão e queda burguesa para despencar em debates comuns a toda gente, classe social, gênero e propriedade intelectual.

Ouso dizer que, evocando Humberto Eco e sua análise dos tipos de leitores em sua conferência Seis passeios pelos bosques da ficção, tanto o leitor acostumado com as convenções do que seja uma boa história tanto aquele leitor experimentado e que sabe não existir história boa ou ruim mas sim a genialidade do ato criador de narrar, encontrarão nas “invencionices” (palavra da autora) deste romance caleidoscópico inumeráveis conexões, pontos de partida ou chegada, para desvendar nas entranhas da mente humana reflexos, flashes, retratos instantâneos, fios narrativos imbuídos de verdade e traços ficcionais ardilosamente constituídos em que as personagens nos parecem mais que humanas.

Selecionar um trecho da obra para justificar minha leitura não é fácil, o sentimento de estar diante de “um pano de guardar confetes” faz com que eu “desça dessa solidão e espalhe coisas sobre um chão de giz”:

“Daquilo que corre em paralelo e ninguém vê. Assim era sua relação com a criada. No receituário básico da fermentação de ódios: coloque alguém sentado, imóvel, silenciado, espectador da vida de outrem em arrulhos e gozos não seus. Sugira muito sutilmente pequeninos acenos de promessas jamais formalizadas, sempre enevoadas, de que sim, um dia, quem sabe, ele possa até fruir de algo assim, há chances, desde que se resigne à inquietude. Depois, negue tudo com uma veemência calada. Sugerindo também, jamais frontalmente – a perversidade é sempre sub-reptícia -, que imagine!, nunca!, falta a esse alguém substancia, inteligência, sobrenome, genética, linhagem, pedigree. Eis a formação do ódio, explosivo, devastador.”

Enquanto lia, disse mais de uma vez a Vanessa que me perdia - me perder de mim lendo é o que mais amo quando leio – poucas obras me dão esse prazer de, ao final da leitura, como se levitando alto pudesse ver o oceano narrativo composto de tantos mares, eu tivesse a graça de um vislumbre do conjunto liquefeito e gozasse a felicidade de ter feito o mergulho.

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Baltazar Gonçalves

Baltazar Gonçalves
Enviado por Baltazar Gonçalves em 31/03/2020
Reeditado em 31/03/2020
Código do texto: T6902373
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