O Quixote sai pela primeira vez, Miguel de Cervantes

O Quixote sai pela primeira vez, Miguel de Cervantes

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Assumindo a identidade de Quixote, Alonso seguiu para a vida que desarrazoadamente reputava real. Queria ação. Certo de que o mundo sentia falta de sua intervenção, deixou sua propriedade, ainda muito cedo, antes do nascer do sol. Fazia calor, era verão. Estava resolvido que havia “agravos para desfazer, tortos para endireitar, sem-razões para emendar, abusos para corrigir e dívidas para saldar”. Era um determinista, aceitava os caminhos traçados por Deus. Quixote não escolheria quem enfrentar. Enfrentaria os problemas que encontrasse. Não avisou à ama ou à sobrinha que partiria. Montado em Rocinante saiu para o campo.

Deixando sua casa lembrou-se que ainda não havia sido armado cavaleiro. Até que essa providência se ultimasse não poderia ajustar o mundo como pretendia. Era uma lei da cavalaria, e não poderia desafiá-la. A lei [da cavalaria] deveria ser cumprida. É só a partir de então que poderia fazer justiça. Em sua mente moldada pelos rituais da cavalaria andante entendia que não poderia buscar a justiça se não cumprisse a lei. O Quixote é um positivista. O poeta Ferreira Gullar reforçou o positivismo do Quixote: ao cavaleiro da triste figura “não parecia legítimo lançar-se em aventuras sem receber antes a ordem da cavalaria”.

Sonhava acordado com as façanhas que realizaria. Seus feitos seriam gravados no bronze, esculpidos no mármore, pintados nas tábuas, comporiam a memória do futuro. Imitava a linguagem das novelas que lia, inclusive em pensamentos. Pensava em voz alta. A amada já lhe fazia falta: “Oh Princesa Dulcineia, senhora desse cativo coração!”.

Em dado momento Cervantes coloca em dúvida qual fora primeira aventura do Quixote. Ainda que autor do livro, confessa aos leitores que não estava seguro quando as aventuras começaram. Optou então por seguir a narrativa de alguns relatos que havia na região da Mancha. Ao que consta seguindo a esses relatos, conta-nos que o Quixote se aproximou de uma estalagem, uma espécie de uma venda de estrada, que seguramente era um castelo.

Duas mulheres se encontravam na entrada desse imaginário e ao mesmo tempo tão real lugar. Em uma tradução lê-se que eram “mulheres que chamam da vida”, em outra, “duas mulheres moças, destas que chamam de boa avença”, no original “a la puerta dos mujeres mozas, destas que llaman del partido”, o que se presume que Quixote se encontrou com duas prostitutas. Uma avença, em português, significa, um acordo, um contrato, o que explicita a profissão das donzelas. Mas são duas senhoritas extremamente humanas e cativantes. Perguntam ao Quixote se sentia fome. Preocupam-se com o outro, por mais bizarro que parecesse. Essas duas moças, que a moral tradicional desprezaria, dão-nos uma lição de humildade, como nos aponta Miguel de Unamuno.

O cavaleiro tinha certeza de que estava na entrada de um castelo, que havia quatro torres e uma ponte movediça. Esperava um anão que anunciaria sua chegada, com um grave corneta, por entre as ameias do edifício. A ameia é um parapeito, em forma de recorte quadrangular, que se construía na parte superior dos castelos. Era de onde se atiravam flechas e água fervendo nos guerreiros invasores. Era também de onde se avisava a chegada de um visitante ilustre. Um castrador de porcos passava pelo lugar, tocando a buzina, o que fez o Quixote supor que sua chegada era solenemente anunciada.

Declama para as mulheres. Usa uma linguagem que memorizou dos livros que leu, e que já não se entendia. As raparigas riam daquelas palavras em desuso, que nada diziam. O dono da estalagem ofereceu serviços ao Quixote, que de memória cita passagem de um cavaleiro que tinha por exemplo, para quem naquele momento qualquer coisa serviria porque “meus arreios são as armas, meu descanso o pelejar”. Pediu que cuidassem de seu cavalo. Uma refeição veio à mesa. Cervantes conta-nos que o Quixote comia um mal cozido bacalhau e um pão preto mais sujo do que suas sujas vestes. A conversa entre o Quixote e o estalajadeiro revela Cervantes brincando com as palavras. Quixote toma o estalajadeiro por “castelhano”, dono do castelo. O estalajadeiro se entende como um “castelhano”, isto é, que vinha da região de Castella.

Quixote ainda não fora armado cavaleiro. Essa condição para que pegasse em armas e corrigisse as injustiças do mundo deveria ser cumprida imediatamente. A cerimônia era necessária. Lembra-nos Francisco Campos, o jurista do regime ditatorial de Vargas, comentando o Quixote (Atualidade de D. Quixote) que as cerimônias desapareciam na vida contemporânea. Perdemos as ondulações do pensamento e da emoção. É o que o Quixote buscava, a ondulação perfeita do pensamento e o desfrute sublime da emoção, ainda que na forma da mais realista ação.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 16/04/2020
Reeditado em 16/04/2020
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