O que ocorreu quando o Quixote deixou a estalagem

O que ocorreu quando o Quixote deixou a estalagem

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Deixando a estalagem o Quixote seguiu o conselho do estalajadeiro, que o sagrou cavaleiro. Era o seu padrinho. Deveria portar dinheiro, camisas limpas e um pouco de unguento, para o caso de ferimentos. Resolveu voltar e passar em sua casa, na busca do que foi recomendado. O Rocinonte parecia adivinhar a vontade do Quixote. Conta-nos Cervantes que o animal cavalgava com tamanha ânsia que mal punha as patas no chão. O Quixote precisava de um escudeiro, e o encontraria na pessoa de um lavrador vizinho, pobre e sem filhos. É a primeira menção a Sancho, ainda que indireta. O Quixote aproveitaria para definir e recrutar um escudeiro, sem quem não seria de todo um cavaleiro. Não há cavaleiros sem escudeiros.

Como escreveu Foucault, o Quixote lia o mundo para demonstrar os livros. O Quixote invertia a lógica da compreensão dos significados. Começava por onde leu, e seguia por onde vivia. Cumpria o que os livros lhe prometiam. Para alcançar a justiça precisava do estímulo da amada, da ajuda do escudeiro, da disponibilidade do animal e também de aventuras e situações perigosas, cuja inspiração colhia dos livros. Demonstraria destreza e coragem, primeiramente lida e em seguida vivida. Verifica-se, mais uma vez, o perigo dos livros. Livros traduzem e implantam ideias, sãs e mórbidas também.

Contente, galhardo e alvoraçado (expressões dos tradutores) o Quixote cavalgava pelos campos quando ouviu gritos. Percebeu um menino (15 anos, André) amarrado, sofrendo com os açoites que seu amo lhe aplicava com violência. Interpelado pelo Quixote o amo garantiu que exercia direito legítimo. O menino, responsável pela guarda das ovelhas, era um desidioso. Todos os dias uma ovelha desaparecia. O Quixote deu ordens para que o rapaz fosse imediatamente colocado em liberdade.

O rapaz aproveitava para reclamar: o amo lhe devia salários. O amo, percebendo a desrazão daquela estranha figura, garantiu que certamente pagaria ao rapaz, assim que chegassem em casa. A exemplo do Quixote, não portava dinheiro naquele momento. Uma certa sabedoria marcava o homem com quem Quixote falava. O aldeão, em sua simplicidade, reconhecia uma premissa da psicopatologia clássica: com os insanos, melhor trata-los com seriedade. Como discutir com um alucinado que se diz Napoleão negando essa condição? Como discutir com quem acredita efetivamente que a terra é plana? Essa lógica é válida em tantas situações outras, nas quais há o fanatismo, na religião e na política, pois são nessas duas áreas onde menos se ouve e mais se ataca.

Confiante no aldeão (Juan Halbudo era seu nome) o Quixote os deixou caminhar. Logo em seguida, o menino estava novamente acorrentado, e vitimado também pela ironia de seu amo, que o aconselhava a procurar o Quixote, para o desagravo. O Quixote caminhava absorvido por um outro contexto de realidade, que era a sua realidade, a única que importava. Imaginava-se justificando o feito para Dulcinéia, a Imperatriz da Mancha, porque “tirou o flagelo da mão daquele desapiedado inimigo que tão sem razão vapulava um tão delicado infante”. Vapular é um verbo que os tradutores usam, com o significado de açoitar, e com a intenção de registrar versão do original, que enfatiza o preciosismo da linguagem de um louco que sabia o que fazer ou dizer, a partir dos livros que memorizou com gozo infinito, ainda que nem sempre soubesse o momento correto para intervir.

O Quixote, parece-nos, não tinha ideias próprias. Aplicava a realidade aos livros, filtrando o mundo dos fatos pelo gargalo do universo das falas artificiais dos livros que leu. Ainda segundo Foucault, o Quixote, sem ser inteiro, era só linguagem, textos, folhas impessoais, uma história já transcrita. Em seguida, o Quixote hesitou qual caminho tomar em uma encruzilhada. Uma cena recorrente nas narrativas de cavalaria, que marca o eterno confronto do herói com um destino que se recusa a aceitar. Ao herói só interessa a glória.

Pela região, porém, passava um grupo de seis mercadores (de Toledo), acompanhados por sete criados. Iam para Múrcia, com o objetivo de comprar seda. Ensandecido (como sempre) o Quixote ordenou que parassem e que respondessem que não havia donzela mais formosa que Dulcineia. Os mercadores se recusaram. Por uma questão de consciência, não aceitaram jurar sobre o que e quem desconheciam. Pediram um retrato de Dulcineia. O Quixote insistia para que confessassem o que tinha por certo como uma notória verdade. Verdade sabida. Exigia que um por todos, ou um de cada vez, jurassem acreditar na formosura de Dulcineia.

Ante a recusa, impugnou a blasfêmia, investindo com ferocidade, atacando os mercadores, que julgava cavaleiros como ele próprio. Afinal, confundia um vizinho (Pedro Alonso) com o Marquês de Mântua. Como ousavam mentir? Mentiam para quem sabia a verdade? O Rocinonte, no entanto, escorregou, não conseguindo se mexer, por causa do peso dos adereços inusitados que o Quixote carregava: lança, escudo, esporas. Os mercadores atacaram. Moído, o Quixote não se queixava. A culpa era do imponente cavalo, acontecia.

Além do que, embates desse tipo eram do imo da cavalaria. Contentou-se com a pisa que levou. Bem feito, pensava. Nas palavras de Unamuno, o Quixote, caído, era um louco que admitia uma lição da realidade; isto é, compensava a queda e a surra com a lembrança de que mais valia ser (ainda que transitoriamente) um leão morto do que um cachorro vivo.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 27/04/2020
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