"A dama de espadas" e "A filha do capitão" de Alexandre Pushkin: um olhar para a história e uma amostra do pioneiro da literatura russa moderna

“A dama de espadas” e “A filha do capitão”, dois livros do escritor russo Alexandre Pushkin, considerado um pioneiro dentro da incrível literatura russa.

ORIGEM, ESTUDOS E FAMA

Pushkin nasceu em 6 de junho de 1799 em Moscou. Ele vinha de uma família aristocrática, sendo seu pai um descendente direto de uma linhagem nobre que já durava séculos. Por sua vez, a mãe descendia da nobreza alemã e escandinava. Seu bisavô paterno foi Governador de Reval (atual Talin, capital da Estônia) e construiu canais e fortes marítimos na Rússia.

Desde cedo, portanto, Pushkin teve contato com o que havia de melhor se tratando de Literatura, tanto de origem europeia quanto russa, ao estudar no Imperial Lyceum, situado no Tsárskoye Selô, a residência imperial de então. Era apreciador de William Shakespeare e de Lord Byron.

Com dedicação total ao estudo e prática da literatura, logo cedo, com apenas quinze anos, publicou seus primeiros poemas, sendo rapidamente reconhecido, antes mesmo de se formar. Facilitou o fato dele incluir a linguagem coloquial em seus textos, de forma harmoniosa, valorizando a linguagem falada pelo povo russo. Incluiu também expressões populares e lendas do folclore de seu país. Ao fazer isso, Pushkin inaugurou a literatura russa moderna.

Pushkin escreveu poemas, peças de teatro e novelas, fazendo uma criativa mistura de drama, romance e sátiras.

ROMANTISMO E O FIM TRÁGICO

Pushkin viveu em plena época do Romantismo, esse movimento artístico que influenciou tão fortemente a Literatura e outras manifestações artísticas. Era aquela idealização, sentimentalismo transbordando os limites da sanidade, uma boa dose de individualismo. Essa dinâmica romântica influenciou tanto a obra quanto a vida pessoal do escritor.

No final da década de 1820, Pushkin conheceu e se apaixonou perdidamente por Natalia Pushkina, uma moça de 16 anos cuja beleza era celebrada na sociedade moscovita. Após muita insistência do escritor, Natalia aceita sua proposta de casamento, que vem a ser concretizado em meados de 1831, após alguns adiamentos alheios a vontade do casal. Apesar das constantes viagens do escritor a trabalho, o casal mantinha uma constante correspondência e, juntos, tiveram quatro filhos. Pushkin dedicava a Natalia poemas.

Em meados de 1835, Natalia conheceu um imigrante francês chamado Georges-Charles de Heeckeren d’Anthès. Rumores surgidos dentro da sociedade russa indicavam um suposto caso extraconjugal de Natalia com Anthès que, até hoje, permanece sem comprovação. Apesar disso, dois anos depois, com os boatos na boca das pessoas, como forma de manter sua honra, influenciado pelo ideal romântico, Pushkin enfrentou seu rival em um duelo. Acabaria sendo ferido mortalmente por Anthès, vindo a falecer dois dias depois, em 10 de fevereiro de 1837.

Natalia não ficou com Anthès. Os biógrafos divergem quanto à adequação, por assim dizer, da viúva. Há quem diga que Natalia falhou com Pushkin como esposa, destacando-se duas das maiores poetisas da história russa: Anna Akhmatova (1889-1966) e Marina Tsvetaeva (1892-1941). Para elas, Natalia nunca quis se interessar pela arte do esposo, supostamente não o prestigiando e, aparentemente, se interessava mais com os eventos da sociedade, acompanhando suas irmãs na corte, situações únicas onde elas poderiam conseguir um marido, ou gastando muito dinheiro na compra de joias e vestidos caros, o que obrigava Pushkin a trabalhar cada vez mais, viajando para divulgar e vender seus escritos. Por outro lado, há quem defenda a memória de Natalia pois correspondências pertinentes ao seio da família, parentes do casal, indicavam um casamento feliz. Após se tornar viúva, falou-se muito de uma suposta relação de Natalia com Nicolau I, imperador russo reacionário, responsável por expandir o território russo. Entretanto, em meados de 1843, ela conheceu Petr Petrovich Lanskoy, soldado que havia servido no mesmo regimento que seu irmão, e com quem veio a se casar no ano seguinte. Tiveram três filhos e ficaram juntos até a morte de Natalia, em novembro de 1863, quando tinha 51 anos de idade.

LEGADO

A questão que fica é: se Pushkin tivesse vivido na época do Realismo, longe dos ideais românticos, teria caído na tentação de se arriscar em um duelo? Porém, se não fosse o Romantismo, teríamos o Pushkin escritor?

Da mesma forma que aconteceu na Alemanha, França, Itália, Portugal, Brasil, etc., as obras de Pushkin não influenciaram apenas seus contemporâneos românticos. Os escritores que migraram para o Realismo ou que já se desenvolveram nesse contexto não buscaram na obra de Pushkin, naturalmente, o sentimentalismo, mas mantiveram o olhar atento para o povo russo nas histórias, no que diz respeito aos seus costumes e suas relações políticas e sociais.

Foram influenciados por Pushkin, em diferentes níveis, Nikolai Gogol (1809-1852), Mikhail Lérmontov (1814-1841), Ivan Turguêniev (1818-1883), Liev Tolstói (1828-1910), Fiódor Dostoiévski (1821-1881), dentre outros.

A DAMA DE ESPADAS

“A dama de espadas” é uma novela escrita em 1826. A história gira em torno de Hermann, um ambicioso jogador de cartas e que, certa noite, numa roda de amigos em torno de uma mesa de baralho, ele conhece a história da Condessa ***, parente de um dos outros amigos jogadores. Ela possui um segredo no qual sempre consegue a carta necessária para vencer qualquer jogo. Hermann, então, coloca em prática um plano para tentar desvendar o segredo da Condessa.

A linguagem coloquial, bem como a ambientação aristocrática são características presentes. O mistério no enredo é uma característica marcante, um traço que influenciaria posteriormente o realismo fantástico de Gogol, visto em obras misteriosas como “O retrato” e absurdas como “O nariz”.

Trata-se de um conto interessante, escrito por um Pushkin bastante experiente na carreira literária e a ausência, de certa forma, de um sentimentalismo não tanto explícito, ainda que presente nas entrelinhas (a ambição nas relações entre os personagens), denota, talvez, uma possível caminhada para um realismo... algo que não chegou a se concretizar devido à morte prematura do autor. Isso, naturalmente, é uma percepção minha tomando como base apenas a leitura dessa obra específica.

A FILHA DO CAPITÃO

“A filha do capitão” é uma novela publicada originalmente em 1836. Conta a história de Piotr Andrêitch, único filho de um honrado e rico oficial aposentado que, preocupado com a possibilidade de ver seu herdeiro desperdiçar a vida na boêmia, o envia para servir no exército. Com a fiel companhia de Savélitch, funcionário de seu pai designado para protege-lo e que o trata com zelo e carinho praticamente paternos, Piotr é designado para servir na pequena fortaleza de Bielogórskaia, sob responsabilidade do capitão Ivan Kuzmitch, mas comandada de fato por sua esposa, Vassilissa Iegórovna. O casal, que o trata muito bem, tem uma filha, a bela Mária Ivánova, por quem Piotr se apaixona. Porém, dois acontecimentos colocarão em risco seu caminho. Primeiro, a existência no local de um oficial chamado Aleksei Chvábrin que, por também nutrir sentimentos por Mária, se torna seu rival. Segundo, o surgimento de Emelian Pugatchov, rebelde cossaco, que lidera uma rebelião contra o Império Russo, então comandado por Catarina II, e que promoverá um cerco à fortaleza.

Trata-se de uma obra romântica, com as características típicas do estilo, principalmente o fatalismo e sentimentalismo exacerbado, com relato dinâmico e personagens interessantes, com destaque para os diálogos entre Ivan e Pugatchov, que possuem visões distintas sobre a forma de encarar a vida. Um exemplo é a fábula do corvo e da águia. Segue:

– Ouça – disse Pugatchov, com inspiração selvagem. – Vou lhe contar uma história que uma velha calmuca me contou na infância. Certa vez, uma águia perguntou a um corvo: “Diga pássaro corvo, por que você vive trezentos anos nesse mundo branco, e eu, ao todo, apenas trinta e três?”. Respondeu-lhe o corvo, “Porque você bebe o sangue dos vivos, e eu me alimento dos mortos”. A águia pensou: vamos tentar comer a mesma coisa. Bem. Voaram a águia e o corvo. Eis que viram um cavalo morto; desceram e pousaram. O corvo se pôs a bicar e elogiar. A águia bicou uma vez, bicou outra, balançou a asa e disse ao corvo: “Não, irmão corvo; melhor do que comer morto trezentos anos é me embebedar pelo menos uma vez de sangue vivo, e depois seja o que Deus quiser!”. Que tal o conto calmuco?

– Divertido – respondi. – Mas viver de assassinato e rouba, para mim, significa bicar carniça.

Pugatchov fitou-me com espanto, e não respondeu nada. Ficamos calados, cada qual absorto em suas considerações.

(trecho de diálogo entre o soldado Piotr Andrêitch e o líder rebelde Emelian Pugatchov, em “A filha do capitão”, de Alexandre Pushkin, escrito em 1836. Editora Principis, 2019, páginas 102-103)

No romance histórico, além de reminiscências de eventos reais que fizeram parte da história da Rússia, a presença de elementos culturais (como a citada fábula), episódios de violência e degradação social e uma pequena dose de sarcasmo e humor, são elementos que influenciariam, como já dito, os escritores que vieram depois de Pushkin, pavimentando a consolidação de uma fase áurea da literatura russa. Por fim, há ainda na obra o protagonismo feminino, representado por Vassilissa e Mária. Tudo isso funciona como um contraponto interessante com os elementos românticos.

Em resumo, “A filha do capitão” é um romance histórico que representa o início da melhor fase da literatura russa. Com narrativa sedutora e personagens interessantes, é uma obra de cuja leitura é fundamental.

AS EDIÇÕES E CONCLUSÃO

Ambos os livros foram publicados pela Principis. Trata-se de um selo pertencente à editora Ciranda Cultural, que se tornou conhecida lançando livros infanto-juvenis. As edições possuem preços populares, algo possível por se tratar de obras em domínio público, capa cartonada e papel de menor qualidade. Apesar disso, o projeto gráfico, embora simples, é muito elegante e simpático, com bonitas ilustrações.

A leitura de Pushkin permite um olhar amostral para o pioneirismo da literatura russa moderna, onde a criatividade e a qualidade narrativa serviram como pilastras de um dos períodos mais ricos da história da literatura universal. Dois livros ótimos.

Manoel Frederico
Enviado por Manoel Frederico em 25/06/2020
Código do texto: T6987752
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