Machado de Assis e o conto “Uma Senhora”

Machado de Assis e o conto “Uma Senhora”

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

O tempo é um devorador de coisas, na expressão de Ovídio, poeta romano, contemporâneo de Otávio Augusto. É um fato: não conseguimos nos opor ao passar dos anos. Acrescento, ao menos literalmente, que o tempo também devora pessoas, o que subentendido na célebre frase do poeta clássico. Para uns, realistas, a velhice é um fato natural. Deve-se aceitar. Para outros, vaidosos a não mais poderem, o passar do tempo é uma tragédia, em forma de morte permanente. Recusam leis naturais.

O envelhecimento é um dado, e não um construído cultural. Como a lei da gravidade, simplesmente é. Pode-se tentar contornar o tempo, mas não se consegue detê-lo. A negativa do envelhecimento, que pode ser um sintoma do pavor para com a morte, é o tema do conto “Uma senhora”, publicado por Machado de Assis em livro de 1884.

Trata-se da história de Dona Camila, personagem singular na galeria machadiana. Obcecada com a juventude, Camila talvez levasse suas preces para Hebe, a deusa grega, filha de Zeus e Hera, que simbolizava a impossibilidade de envelhecer. Hebe era a deusa da juventude. Ironicamente (como sempre) Machado narra que viu Dona Camila pela primeira vez quando ela contava 36 anos, ainda que parecesse 32, mas que talvez não passasse da casa dos 29. Afinal, que idade ela tinha?

Dona Camila, continua o narrador, era “cor de leite, fresca, inalterável”, deixando às outras mulheres o trabalho de envelhecer. Dona Camila só pensava no existir. Tinha o “cabelo negro, olhos castanhos e cálidos”. Tinha uma filha, Ernestina, que orçava entre 14 e 15 anos. Machado conta-nos que Dona Camila “tinha as espáduas e o colo feitos sobre encomenda para os vestidos decotados, e eram assim também os braços”. O narrador comparava os braços de Dona Camila com os braços da Vênus de Milo, a deusa grega da beleza feminina. Dona Camila sabia que era bonita, por instinto próprio e também porque percebia o modo como as outras mulheres a olhavam. Era uma mulher honesta; porém, segundo Machado, mais por princípio e por orgulho do que por amor ao marido. Era, creio, uma ensimesmada.

Fazia de tudo para retardar os anos. Não aceitava um fio de cabelo branco, a denúncia em forma objetiva e insofismável da passagem da idade. O cabelo branco, no entanto, revelava-se de outro modo, isto é, na filha, Ernestina, que crescia, e virava moça. Retardou o baile de debutantes da filha, que ainda vestia com roupas de adolescente. Sentia por Ernestina amor e cólera. Quanto lhe disseram que se pareciam irmãs, abdicou um pouco da preocupação e da concorrência. Menos mal.

Na medida em que namorados e pretendentes apareciam, Dona Camila frustrava Ernestina, sempre apontando um erro, uma falta, confirmando uma razão para não permitir que o namoro seguisse para o altar. Ernestina aceitava. Era o caso de um nariz torto, de um outro pormenor qualquer. Um outro pretendente, um advogado de 27 anos, viúvo, não conseguiu avançar em seus planos para se casar com Ernestina. Gorou a candidatura. Retardando o casamento da filha, Dona Camila pensava que atrasava o bater do relógio. No fundo, temia um neto, que desabaria sobre a percepção que tinha, relativa à infinidade da vida.

Dona Camila e Ernestina passeavam juntas, disputavam olhares. Dona Camila se sentia ainda (muito) jovem e bonita. O tempo passou (embora ela não o quisesse). Fios brancos começaram a surgir. Ela os amputava, sem piedade. Teria que aceitar um genro. Pior. Teria que aceitar um neto. O tempo chegou. Dona Camila era avó. Conta o narrador que a viu várias vezes, com a criança, e com uma escrava. Tratava a criança como se fosse a mãe. Segundo Machado “ia tão apertadinha, tão cuidadosa da criança, tão a miúdo, tão sem outra senhora, que antes parecia ser mãe do que avó: e muita gente pensava que era mãe”.

Dona Camila simboliza a impotência do ser humano contra o tempo e contra o destino. A vaidade, na qual muitos acomodemos (ou não) nossa largueza de vida, dita esperanças e comportamentos. Ainda que indiferente para com o dogma religioso, Machado era um leitor das Escrituras. Conhecia o Livro da Sabedoria. Talvez foi no Eclesiastes que buscou o argumento que sustenta essa intrigante narrativa. O tempo é um devorador de coisas e pessoas, queiramos ou não.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 27/07/2020
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