Frankenstein

FRANKENSTEIN
Miguel Carqueija

Rsenha do romance “Frankenstein”, de Mary Shelley. L&PM Pocket, Porto Alegre-RS, 2014. Tradução: Mécio Araújo e Jorge Honkins. Capa: Ivan Pinheiro Machado sobre desenho de Marcos Pilar.

A imensa fama deste romance ultrapassou-o. O cinema e outras mídias tornaram os personagens principais — o Dr. Victor Frankenstein e seu monstro sem nome — mais conhecidos pelas variantes. Para início de conversa, o monstro, graças às deturpações do cinema, acabou sendo chamado de Frankenstein. Houve até, nos anos 50, a célebre canção “Frankenstein rock”.
Ora, o monstro nunca teve nome.
Há quem diga que esta obra é a primeira da ficção científica. Não concordo porque existem outras anteriores, como as “Viagens de Gulliver”, de Jonathan Swift. De qualquer forma o clima de “Frankenstein” é mais de história de terror, densa, soturna e asfixiante.
A maior parte da narrativa é feita na primeira pessoa pelo próprio Dr. Frankenstein, que vai contando fatalisticamente a sua tragédia pessoal. Do ponto de vista da Ciência há pouca coisa a dizer afora a referência a alguns autores antigos como Paracelso e Alberto Magno. A trama se desenrola pelo fim do século 18. Ora, a idéia de criar vida humana utilizando a eletricidade para vivificar um cadáver — na verdade uma montagem de partes de cadáveres — nem remotamente é viável na vida real, e torna-se mais inacreditável ainda se considerarmos as limitações científicas e técnicas do século 18 e pior, um pesquisador isolado, trabalhando em segredo e sem ser milionário.
Todavia o romance se sustenta pela “suspensão da incredulidade”. E por ser bem escrito, apesar do tom pesado onde a fatalidade é contada de forma grandiloquente — hoje esse estilo é antiquado.
Entretanto existem pontas soltas na história. Eu sou meio chato nessas coisas porque eu mesmo não deixaria essas pontas soltas.
Uma delas está na narrativa de Robert Walton, o navegador que viajou até as paragens árticas, onde encontra o quase morto por congelamento Frankenstein, o recolhe e salva. Frankenstein estava num bloco de gelo, com um trenó e apenas um cachorro ainda vivo.
Ora bem, o livro não fala qual foi a sorte do cachorro! Se ele também foi recolhido ou foi deixado para morrer no gelo.
Outro trenó, apenas avistado, era guiado pelo monstro. Lá para o final, também nada mais se fala sobre o destino desses cães.
Ernest, o irmão mais novo de Frankenstein, é citado pela última vez no capítulo 23, após a morte de Elizabeth, e totalmente esquecido no final, nada mais se fala de seu destino.
Não dá para simpatizar com Victor Frankenstein. Como o Capitão Ahab de “Moby Dick”, ele é o verdadeiro vilão da história. Primeiro fica obcecado pela idéia de criar o homem artificial. Quando obtém êxito fica horrorizado com sua própria criação e abandona o androide á própria sorte. Tornado um pária, o monstro é levado a matar. E quando pede um acordo ao cientista ele o trai miseravelmente.
Ressalvada a inverossimilhança de um androide que, como Tarzan dos Macacos, aprende as coisas por seu próprio meio, o fato é que o monstro (que assim o chamo pela tradição e por não lhe ter sido dado um nome) é mais sábio e mais digno que o cientista que, levado por ódio e intolerância, só se refere a ele como “monstro” e “demônio”.
Nos diálogos do androide com Frankenstein e com Walton, ele revela inteligência sagaz e lúcida compreensão da sua situação. O fato é que Frankenstein, embora se vitimize ao longo de toda a saga, teve o que merecia.
Mas este é sem dúvida um grande romance.

Rio de Janeiro, 23 de agosto de 2020.