Os contos de Maupassant

OS CONTOS DE MAUPASSANT
Miguel Carqueija

Resenha da antologia “Contos”, de Guy de Maupassant. Editora Cultrix, São Paulo-SP, 1985. Introdução, seleção e tradução: Ondina Ferreira. Capa: Mogens Ove Österbye.

Maupassant, autor francês de curta existência (1850-1893), deixou porém copiosa literatura, sendo principalmente um contista, bem consciente, como Tchekov, das limitações do conto, que não deve ser um romance em miniatura.
Seu estilo é amargo, pessimista, por vezes chocante. Seus personagens, envolvidos na miséria humana, miséria não só financeira.
“Luar” fala de um cura de aldeia cheio de dúvidas e questionamentos improváveis. Como costuma acontecer em autores anti-clericais, a visão que Maupassant tem dos padres é mesquinha e bitolada.
“A máscara” fala de um libertino que não quer aceitar sua idade avançada e faz uso de máscaras para nos bailes desse tipo continuar paquerando as garotas. Sua esposa, como a Amélia do samba de Ataulfo Alves e Mário Lago, suporta tudo mas sofre horrivelmente, como revela ao médico.
“O albergue” é uma história de tragédia na solidão, em meio à neve, uma narração bastante cruel em torno dos homens e do cão que guardavam o albergue durante o inverno.
Note-se que são narrativas escorreitas, estilosas.
“Um sarau” é um quiproquó tragicômico sobre um cidadão respeitável que comete o erro de ir na casa de um artista a quem admirava e se vê envolvido em situações constrangedoras.
“Drama humilde” é a narrativa pungente de uma mãe abandonada pelo próprio filho e que se vê sozinha na vida, viajando pelo mundo como uma forma de escapismo. Em geral são tristíssimos os contos de Maupassant.
“Mademoiselle Perle” trata dos subterrâneos dos sentimentos e como o amor, por conveniência, pode se enrustir e reprimir. É uma história bastante triste como costumam ser as de Maupassant.
“Quem sabe?” é um conto de “non sense”, e eu nem sabia que já existiam no século 19. Fala de um homem cuja mobília foge de casa (?) sendo depois encontrada num antiquário.
“A estufa” é uma vinheta erótica, onde a “performance” sexual do casal melhora depois que descobrem as visitas que a criada recebia de noite, às escondidas, e passam a observar.
“Meu tio Jules”, um dos melhores contos, é patético ao mostrar a fé cega de uma família de vida apertada, tal caso é contado pelo filho homem, havia duas irmãs. A vida que levavam era muito difícil:
“Economizávamos em tudo: nunca aceitávamos um jantar, para não termos a obrigação de retribuí-lo; comprávamos mantimentos a preço reduzido, os saldos da casa. Minhas irmãs cosiam seus próprios vestidos (...).”
Pois essa família quase paupérrima vivia esperando a volta do irmão, cunhado e tio Jules, e isso por mais de dez anos. Tendo empobrecido na França ele partira para a América afim de tentar a sorte nos Estados Unidos. E chegara a se comunicar, dizendo estar ganhando dinheiro. Quando voltasse saldaria antigas dívidas e seria o esteio da família à qual antes prejudicara.
De saída percebemos que a família vivia na vã esperança dessa volta.
“Aparição” é um conto de assombração, impressionante mas sem muita consistência. O desaparecimento do velho criado fica sem explicação.
“Uma surpresa” é um conto bem revelador do anticlericalismo de Maupassant, com aquele conceito que conhecemos, totalmente depreciativo dos sacerdotes e muito injusto. Esses autores anticlericais parece que não conseguem enxergar a beleza do Cristianismo. Basta dizer que o padre da história pronuncia o nome de Deus “com tanta violência como se desse um tiro de pistola”. Isso, num século em que havia Dom Bosco e Damião de Veuster.
“O medo” trata do tema do título e mostra como a superstição leva ao pânico, que por sua vez gera atos tresloucados.
“O Tio Amable” é um conto que eu nunca havia lido — como nenhum deste volume — mas o reconheci, pois passou na televisão no tempo em que esta exibia peças teatrais, depois substituídas pelas ignóbeis novelas. Fala de um usurário do campo que a custo aceita o casamento do filho, eque detesta a moça por considerá-la um prejuízo financeiro. História exagerada e muito triste. Deve haver uma peça baseada no conto, daí a exibição na tv em forma teatral.
“Uma consoada” é bem uma história de miséria onde os camponeses, um casal, por falta de espaço e de leito dormia com o avô na mesma cama e quando ele adoecem, dormem no chão. Quando ele morre recuperam a cama e até o enterro guardam o cadáver na arca, sobre a qual fazem as refeições.
“Uma paixão” conta um estranho triângulo amoroso onde uma mulher obstinada infelicita marido e amante.
“Pesadelo” é a visão terrível de um passeante noturno pelas ruas de uma Paris que vai silenciando e morrendo aos poucos e por fim o pedestre se vê num mundo vazio de gente, de luz, de ruídos, onde em nenhuma casa se atende a campainha, num inexplicável e apavorante adormecer de tudo.
“Uma ‘vendetta’” é narração mais terrível ainda, onde uma velha treina sua cadela para vingar o assassinato do filho. Tipicamente a história se passa na Sardenha.
“O abandonado” focaliza uma senhora que insiste com seu antigo amante para irem ver o filho secreto que ela nem conhecia, fato que o marido não podia saber. Outra narração muito triste.
“A aventura de Walter Schnaffs” é uma peça burlesca passada na guerra franco-prussiana. O personagem do título é um soldado prussiano perdido de sua tropa em território francês e cujo único desejo é ser capturado para ter o que comer, mas aparecer sem ser exterminado era o problema.
“Pierrô” eu detestei ler. Conta a terrível crueldade contra um cachorrinho, perpetrada por uma mulher usurária e sua criada. A leitura é revoltante.
“O afogado” é outra história cruel de bárbaras violências de um marinheiro contra a sua esposa. Depois que ele morre afogado ela ainda esbarra com os mesmos impropérios vindos do papagaio.
“No campo” é uma vinheta igualmente cruel, de pais que vendem o próprio filho, levado para uma vida melhor; e o rapaz da família vizinha recrimina os pais por não ter sido vendido. Maupassant consegue criar contos deprimentes.
“O armário” fala da vida dura de uma prostituta que tem um filho de 12 anos e se vê na contingência de fazê-lo dormir no armário quando recebe visitantes noturnos.
“A morta” é uma narrativa fantasmagórica que até faz lembrar a “Dança dos esqueletos”, desenho animado de Walt Disney. Mostra bem a visão pessimista de Maupassant a respeito do gênero humano.
“A confissão” é outra narrativa terrível que retrata a hipocrisia humana misturada com egoísmo: um pai que odeia seu filho natural e lhe provoca a morte, para que não atrapalhasse o seu casamento.
“Na água” é uma narrativa de terror onde um barco e seu ocupante ficam retidos no rio por um fator desconhecido e subaquático, que retém a âncora. Maupassant tinha um aguçado sentido do terror, presente em várias de suas histórias, como a célebre “O Horla”.
Rio de Janeiro, 3 de outubro a 29 de novem
bro de 2020.