Diário das minhas leituras/55

13/12/2020 – JOSÉ RIZAL

Livro: Noli me tangere – Novela tangala

Autor: José Rizal

Edição espanhola

Ano da edição original: 1887

José Rizal é o “Machado de Assis das Filipinas” não apenas por ser considerado o melhor escritor do país, tampouco porque faz um delicioso uso da ironia e sequer porque também tem notável erudição: há entre os motivos de comparação o fato de ambos só não serem considerados clássicos mundiais porque os olhos do mundo não estão voltados aos países desses dois autores. “Noli me tangere”, a obra-prima de Rizal, tem um pouco do Cervantes (os episódios cômicos), um pouco do Zola (a luta social), um pouco do Victor Hugo (a discussão filosófica), um pouco do Dickens (o drama das crianças) e até um pouco do Mark Twain no final do livro (a perseguição marítima). A esses elementos reconhecidos como clássicos o autor acrescenta a tinta local da história filipina, país de curiosa colonização espanhola, empreendida notadamente por religiosos, e faz uma obra essencialmente crítica aos costumes do seu país no final do século XIX. Com uma verve afiada, ele ousa por às claras muitos desmandos de políticos e sobretudo de religiosos na condução dos rumos do país (não à toa, os religiosos rugiram ferozmente à publicação do livro). São especialmente interessantes os momentos em que se discute a questão do ensino e, depois, a própria estrutura da sociedade filipina de então e a possibilidade de uma reforma. Muita coisa também se poderia aplicar à realidade brasileira, também vinda de uma colonização problemática, com efeitos que se sente até os dias de hoje. Aparentemente, o pensamento de Rizal varia entre Ibarra, que é o personagem principal da trama e que busca reformas sem revolução, Elias, um revolucionário protoanarquista, e ainda o filósofo da aldeia que, como costuma acontecer, é tido como louco. As divergências entre eles parecem ser resultado também das discussões internas do próprio escritor. Fora de dúvida, em todo caso, é que ele tinha consciência do estado crítico do seu país e da necessidade de uma reforma da sociedade. Seu livro é um testemunho bastante eloquente da realidade do seu tempo e, também, da própria trajetória do seu escritor, que, visto como elemento perigoso, acabaria fuzilado aos 35 anos de idade. Esse livro foi escrito quando ele tinha apenas 25, o que mostra bem que se trata de um gênio precoce e, ao mesmo tempo, torna ainda mais terrível o crime de tirar a sua vida quando ainda tinha muito a produzir. Não é um livro perfeito, naturalmente, nota-se alguns problemas de construção, e alguns citam também exageros na trama, mas bem poucos de nós seriam capazes de produzir uma obra dessas aos 25 anos de idade. Ademais, é uma história tão movimentada, tão cheia de personagens e eventos interessantes, bonitos e engraçados, que a teledramaturgia está comendo bola em não adaptar isso para a televisão. Vale conhecer o livro e vale pesquisar sobre o autor, personagem multifacetado de vida intensa.

17/12/2020 – HARUKI MURAKAMI

Livro: Homens sem mulheres

Autor: Haruki Murakami

Editora: Alfaguara

Ano: 2014

Tradução: Eunice Suenaga

O título me seduziu, pois sou um eterno "homem sem mulher", e por isso achei que me identificaria com histórias que fatalmente girariam em torno da solidão, mas a verdade é que não me identifiquei em nenhum momento com os personagens dos contos. Todos eles não eram realmente homens sem mulheres e no máximo passavam um período sem elas, sem que houvesse neles nada de especialmente impeditivo para que continuassem a ter outras mulheres. São, em geral, personagens com dinheiro, de classe média ou alta, que não passam as agruras financeiras que eu passo, o que também contribuiu para que eu não me identificasse com eles. Ademais, a forma como eles vivenciam a experiência amorosa, em alguns casos, me lembrou do que disse uma vez dos contos do Marcelo Rubens Paiva, que praticamente tornavam o amor uma coisa repulsiva. O melhor momento do livro para mim é a história que a personagem Sherazade conta no meio da história principal. Ou seja, a subtrama era melhor do que a trama e lamento que não tenha sido essa a verdadeira história. A história inspirada no Kafka tem lá a sua graça, mas nada como o próprio mestre.

24/12/2020 – ELIN PELIN

Reli o conto “O Natal do oficial-de-justiça” e confirmei que se trata de uma admirável peça desse búlgaro que, ao que tudo indica, foi exímio cronista, embora quase nada exista dele em português. O conto trata de um cocheiro que conduz um oficial de justiça rumo a uma aldeia do interior. Os dois entabulam uma conversa, na qual o oficial mostra todo o seu desprezo por campônios como o cocheiro e diz que está viajando justante para dar o bote sobre um desses canalhas que haviam cometido alguma irregularidade: “Pode você ficar certo de que ele terá boas razões para lembrar-se de mim neste Natal! Vou confiscar toda a sua cevada... Até o último grão! Não só para ele aprender a andar direito, mas também como advertência ao resto da canalha, que assim não tentará mais enganar as autoridades”. E continuou um discurso inflamado contra os campônios, “beberrões, sem-vergonhas, uma verdadeira escória humana”. A viagem segue. O oficial tem pressa, quer chegar à aldeia antes que anoiteça e comece a esfriar. Mas o cocheiro está pensativo. Ele conhece o homem a quem o oficial vai tomar toda a cevada. Era um homem pobre que certamente teria um ano de fome se lhe tomassem todo o seu sustento. Ele precisava avisá-lo para que escondesse a sua cevada e deixasse o paiol vazio antes de o oficial chegar. Já é noite, começa a esfriar. O cocheiro decide então jogar o coche dentro de um charco. A água começa a subir. Enquanto o oficial reclama, o cocheiro solta um dos cavalos. Depois monta no outro e avisa ao oficial: “Amanhã de manhã... bem cedinho... Virei buscar o senhor. Há cevada no coche – pode fazer uma cama. E eu não lhe cobrarei a dormida”. O oficial praguejava, ameaçava, fazia de tudo, mas o cocheiro se foi. “Volte! Por favor... por favor! Eu pago o que você quiser... pago qualquer preço! Ajude-se a sair deste maldito pântano! Não me abandone! Eu tenho filhos! Eles estão me esperando... Estamos no Natal! Você não tem coração? (...) Hei, amigo! Animal! Estúpido! Volte! Bandido! Tire-me daqui! Tenha pena de mim! Meus filhos! O Natal! Cocheiro do inferno! Cão imundo!”. Pôs-se a chorar como uma criança, mas a noite negra não lhe deu resposta.

24/12/2020 – A. J. CRONIN

Também reli “O conto do preboste”, outra obra admirável, essa do escocês A. J. Cronin. Trata-se de um rapaz que gostava de patinar e a sua mãe, verdadeira megera, que lhe criava sozinha sob um regime para lá de autoritário, não se lhe concedendo a menor possibilidade de afeto, mas, ao contrário, tratando-o terrivelmente a cada oportunidade. O rapaz não a desobedecia, apesar das proibições que recebia. Um dia, ele desobedeceu. Na véspera de Ano Novo, haveria uma corrida de patinação, aproveitando que o gelo cobria partes consideráveis da região. O jovem desobedeceu a sua mãe para participar da corrida. Estava liderando a disputa, quando subitamente foi tragado por uma fenda que se abriu no gelo. Morreu. Foram então trazer o corpo à mãe e é interessante que ela a princípio achava que tudo era uma questão de desobediência, sem saber que já era um caso de morte. Depois, num momento de solidão, quando já não há mais o que fazer, essa mãe irá confessar ao filho morto todo o amor que lhe tinha em vida.

24/12/2020 – GEORG DUHAMEL

Esse francês fez um bonito conto em “O Natal de Réchoussat”. Capta um jovem ferido de guerra e o seu enfermeiro. O jovem está numa ala isolada e apresenta estado lastimável, não sendo provável que venha a sobreviver. Mas está ansioso pela chegada de uma turma que, aparentemente, se dispunha a alegrar um pouco o Natal dos enfermos. Achava que não viriam visitá-lo, mas por fim o gurpo aparece, com uma árvore de Natal, com presentes e com fantasias de reis magos. Então o homem esquece um pouco da sua condição. Fica feliz, mas logo isso passa e ele sente todo o drama da sua condição.

24/12/2020 – ORÍGENES LESSA

Outro conto de Natal fez Orígenes Lessa em “O Natal de Tia Calu”. Trata-se de uma mulher que é quase uma mãe para um grupo de jovens aviadores, num período em que, muito mais do que hoje, a aviação levava a muitas mortes. Eram muitos os aviadores de início, mas eles foram diminuindo. Os que restavam passavam o Natal com a Tia Calu. Orígenes Lessa flagra um ambiente que não muitos se lembrariam de registrar. Ao final, descobre-se que a própria Tia Calu havia perdido um filho num acidente de avião.

29/12/2020 – HEINRICH BÖLL

Livro: El pan de los años mozos

Autor: Heinrich Boll

Editora: Titivillus (digital)

Ano: 1955 (original)

Tradução: Feliu Formosa

Confesso que a minha maior motivação para ler esse livro foi o fato de o protagonista ter o sobrenome Fendrich, ou seja, o mesmo que o meu. Como também se tratava de uma obra escrita por um Nobel da Literatura, eu precisava conhecer esse livro. A verdade, porém, é que o livro não me entusiasmou muito. A narrativa toda se concentra em um único dia, uma segunda-feira em que Walter Fendrich, sujeito que trabalhava consertando máquinas de lavar na Alemanha pós-guerra, recebe Hedwig, uma conhecida de sua terra natal que agora vai tentar a vida na cidade grande. Isso causa grande perturbação em Fendrich, que até então achava que levava uma vida razoavelmente boa, mas subitamente está disposto a jogar tudo para o alto diante do impacto trazido pela aparição da moça. Em meio a isso, há várias memórias dos tempos de miséria de Fendrich, quando literalmente precisava batalhar para ter algum pão para comer. Curiosamente, eu achei que a história se sairia melhor no cinema do que na literatura, e há, de fato, um filme inspirado no livro, feito ainda em 1962, mas eu não o assisti. No filme, com certeza não há tantas metáforas e comparações que se prolongam por tempo suficiente para que se perca o fio da narrativa, um trejeito do autor que me incomodou várias vezes.

31/12/2020 – JAN NERUDA

Reli no Natal alguns contos do Jan Neruda. É engraçado o que acontece com a minha leitura de contos, pois muitos de que eu gostava bastante perdem força em uma releitura, ao passo que outros que eu não havia gostado tanto de sobressaem. No caso, o meu conto favorito do livro “Malá Strana – Vestígios de Praga” era o “Escrito no Dia de Todos os Santos”, sobre uma solteirona que havia sido vítima de dois malandros, os quais decidiram se passar ao mesmo tempo por homens apaixonados por ela, deixando-a numa confusão que só vendo, mas tudo por meio de cartas, sem que nunca um deles tomasse alguma atitude prática. Acontece que os dois morrem e a mulher compra para si uma sepultura exatamente no meio do caminho entre as sepulturas dos dois “amantes”, para não precisar ter que escolher entre eles. A trama é bem interessante, mas senti que nessa releitura não achei a execução tão fantástica como havia me parecido na primeira leitura. Por outro lado, ganhou força “A missa de São Venceslau”, conto sobre um coroinha que decide se esconder na igreja e ali permanecer depois que ela foi fechada, pois tinha a esperança de acompanhar uma missa que, segundo a lenda, seria ministrada pelo próprio São Venceslau à meia-noite. É uma história muito bonita e tem ainda o mérito de nos fazer “ver” o cenário construído. O conto “De como o Sr. Vorel esturricou seu cachimbo de espuma do mar” também foi relido. Trata-se de um forasteiro que abriu um comércio, mas enfrentava a resistência e o preconceito da população local. A situação piorou depois que viram o seu comércio cheio da fumaça do cigarro que ele fumava para passar o tédio. Por fim, ele acaba tendo que se livrar do negócio, ocasião em que também se livra da vida. Um conto também interessante, se bem que não tão excepcional. Guardo ainda uma imagem muito boa de “Figuras”, que também faz parte do livro e que está mais para novela, mas esse eu não li desta vez.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 31/12/2020
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