A cor púrpura, de Alice Walker

A cor púrpura, de Alice Walker

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

“A cor púrpura”, de Alice Walker (nascida em 1944) é um romance publicado em 1982, que levou (merecidamente) o prêmio Pulitzer no ano seguinte. A autora, filha de um agricultor e de uma costureira, estudou em Atlanta, aprimorando-se como escritora. Denuncia o sexismo e o racismo. “A cor púrpura”, que também foi levado para o cinema em 1986 (na direção de Steven Spielberg, que leu apaixonadamente o livro), é uma narrativa que põe em relevo a percepção de “sororidade”, isto é, de mulheres que se ajudam mutuamente.

Parece-me ser este o ponto principal desse livro necessário de ser lido. A autora também discorre sobre a violência sistemática perpetuada contra mulheres, sobre o poder da aprendizagem no contexto da mudança de nossas vidas, bem como sobre o racismo, que é o pano de fundo da obra. Um livro que emociona, que faz pensar, que não é para diletantes. É militância pura em forma de literatura. Na versão do cinema, demanda que se assista de mãos dadas com o outro eu, que sempre buscamos. Busca infinita.

Há uma belíssima tradução da José Olympio Editora. Os tradutores conseguiram passar para o português a fala sulista e simples da personagem central, intraduzível muitas vezes. Não só no contexto das traduções, a reprodução de falas menos elaboradas é um problema. Corre-se o risco de algum artificialismo. Os modernistas tentaram. Não acho que conseguiram. Alcântara Machado chegou bem perto do dialeto ítalo-paulistano. Guimarães Rosa, ao mesmo tempo, foi sertanejo e foi um neologista. Creio que a única escrita verdadeiramente genuína que temos, nesse campo, é de Carolina Maria de Jesus, em “Quarto de Despejo”, que comentarei em colunas vindouras. Alice Walker, tanto no original, quanto na tradução, foi feliz nesse esforço de reprodução. A autora reproduz a linguagem local (e da época), o que faz da leitura do livro (especialmente no original) uma experiência linguística memorável.

“A cor púrpura” é um romance epistolar, isto é, desenvolve-se ao longo da troca de cartas, principalmente entre duas irmãs, Celie e Nettie. O texto é carregado de símbolos, a começar pelo título do livro. Uma das personagens observa que o Criador aprecia ver sua criação apreciada, e que se aborrece quando as pessoas não percebemos as pequenas belezas que há no mundo, a exemplo do caminhante pelo campo, que não se extasia com a beleza da cor púrpura. Temos dificuldade em apreciar a beleza do que é simples, do que está à frente de nossos olhos, porque parece que estamos sempre onde não conseguiremos chegar.

O leitor encontra também muitas passagens de forte explicitação sexual. Há também recorrência de estereótipos. A autora justificou-se, lembrando que apenas expunha situações reais, e não as enfatizava. Alice Walker foi aluna de Howard Zinn (1922-2010) historiador norte-americano extremamente progressista.

Celie é a personagem central. Abusada pelo marido de sua mãe, engravidou duas vezes. Gerou um menino e uma menina, que foram entregues a um casal de missionários. Trabalhadora, tímida, retraída, a personagem central protagoniza uma vida sofrida. Nettie é a irmã, com quem Celie trocou cartas. As irmãs prometeram que somente a morte as separaria. Nettie foi para a África com o casal de missionários, cuidando, desse modo, das sobrinhas, sem que a irmã o soubesse.

Albert é o marido de Celie, a quem trata como escrava. Viúvo, tem uma renca de filhos, que hostilizam Celie, recebendo-a com uma pedrada na cabeça. Violento, agressivo, ameaçador, truculento, Albert é o símbolo de um patriarcalismo abominável. Apaixonado por Shug, uma cantora de blues, agride Celie, como resultado de sua frustração. Shug (diminutivo de “Sugar”, açúcar), é uma mulher independente, tida como prostituta por alguns (o que não é verdade); é amante de Albert. É filha do pastor da cidade, que não admite o fato de que ela utilize sua voz com uma música que não seja sacra e que, portanto, não seja de glorificação divina.

Há também Harpo, filho de Albert, que tenta imitar o pai, com pouco sucesso. Ainda bem. Casou-se com Sofia Butler, que merecia um romance à parte. É uma personagem encantadora. Forte, com ideias firmes, enfrentou a todos, inclusive o prefeito, e sua mulher, o que lhe custou alguns anos de cadeia. A esposa do prefeito (Sra. Millie) é um exemplo de hipocrisia para com a questão racial. Dizia-se amiga dos negros, a quem explorava, com requintes de crueldade. Era uma déspota cheia de sadismo, fingindo-se de mulher avançada.

A narrativa é linear. Os fatos são acompanhados no contexto das cartas. Celie foi abusada pelo padrasto, que pensava ser o próprio pai. Engravidou duas vezes. As crianças foram entregues ao casal de missionários. Albert quis casar-se com Nettie, porém o padrasto determinou que se casasse com Celie. Mal tratada desde o momento em que chegou à nova casa, Celie de algum modo acomodou-se à situação. Violentada pelo marido, em todos os sentidos, resignou-se e tratou de sobreviver. Nettie viveu por um tempo na casa da irmã. Recusando-se às investidas sexuais de Albert, foi expulsa da casa. Antes, Nettie alfabetizou a irmã. Fizeram a promessa de que trocariam cartas.

Albert era violento com Celie, e uma das explicações radica na frustração que a ausência de Shug lhe causava. Escondia as cartas que chegavam da África. Shug passa pela cidade e vive na casa de Albert. Agressiva para com Celie, vai mudando seu comportamento. Passam a ser inseparáveis. Há um relacionamento íntimo entre elas. Celie, pela primeira vez na vida, sentiu um contato físico marcado pelo afeto. Um novo mundo se lhe descortinava. Shug seguiu o caminho, retornando um tempo depois, casada. Exibiu a aliança para o pai, como que explicando ao pastor moralista que era uma mulher respeitada.

Shug defendeu Celie, nos confrontos com Albert. As cartas são encontradas. Celie enfrentou o marido violento, deixando a casa. Contra a força, há resistência sim. Com a morte do padrasto viu-se herdeira, vivendo na casa onde passara a infância. Trabalha como costureira, abrindo um próspero negócio. Essa concepção é simbólica. Creio que a autora pretende significar que Celie tomou o controle da vida. O fim da narrativa é emocionante, tira lágrimas do leitor mais indiferente.

“A cor púrpura” é um texto literário, em forma de romance. Não se trata de uma biografia ou de um registro histórico do qual se espera verossimilhança. Há circunstâncias ficcionais que provavelmente não se enquadram nos limites da vida real. Substancialmente, é um apelo fortíssimo para uma reflexão sobre a condição humana em geral e sobre a condição feminina em particular. “A cor púrpura” é arte imitando a vida, explicando a vida, dando sentido à vida.

O título sugere que devemos valorizar a vida. Lembro-me daquele suposto testamento literário de Jorge Luís Borges, que ao fim da vida (tinha 85 anos) reconheceu que deveria ter ido a lugares onde nunca esteve, que deveria ter comido mais doces e menos verduras e que deveria ter tido mais problemas renais e menos problemas imaginários.

Arnaldo Godoy
Enviado por Arnaldo Godoy em 11/01/2021
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