REBECCA - Daphne Du Maurier

Rebecca, é um romance escrito por Daphne Du Maurier (publicado em 1939), escritora inglesa que se tornou conhecida no mundo inteiro pelo seu talento para contar histórias impactantes e também por ter tido algumas de suas obras adaptadas para o cinema por grandes diretores como Alfred Hitchcok.

A história é narrada por uma personagem sem nome, que trabalha como dama de companhia para uma rica senhora norte-americana, Mrs. Van Hopper. E durante uma viagem ao sul da Itália, a narradora conhece por acaso Maxim Winter, um rico viúvo por quem se apaixona depois de passar quinze dias na companhia dele em passeios românticos, quase secretos. Maxim a pede em casamento para o choque de Mrs. Van Hopper e depois de uma lua de mel pela Europa, eles vão morar na Inglaterra, na famosa mansão Menderley, propriedade da família de Maxim Winter. E ali a protagonista/narradora vai viver dias bem tumultuados na tentativa de se tornar a nova Mrs. Winter. Pois, a finada esposa Rebecca era uma mulher muito admirada e adorada por todos a sua volta e sua presença marcante está em todo lugar, assim como nas lembranças daqueles que a conheceram que e frequentaram Menderley em seus anos gloriosos. Assombrada por essa presença e também pela antipatia da governanta Mrs. Denvers, a protagonista enfrenta desafios diários para tentar agradar o marido e ocupar um lugar na alta sociedade que agora frequenta, mas sente não ser legitimamente o seu.

Até aqui não temos muitas novidades, lembra o velho conto da gata borralheira adaptado. Mas o que vai tornar essa história diferente das outras que também abordam a temática da segunda núpcias de um homem rico, é o desenvolvimento que Daphne Du Maurier cria para ela. A autora transforma esse suposto conto de fadas já batido numa história apavorante, cheia de mistério e com um final sinistro. Talvez por isso tenha se destacado dentre tantas outras histórias com temática semelhante.

Daphne é uma autora bem descritiva e sua narrativa nos leva a mergulhar no ambiente da história, que ora é de suavidade, ora de tensão e mistério. A maneira como descreve Menderley, com todos os seus jardins, bosques e costa faz com que a mansão nos pareça uma personagem tão viva como os demais. Esse é outro ponto positivo de sua narrativa, ela é envolvente e faz você mergulhar na história, principalmente se você gosta de histórias com ênfase em paisagens. Ela vai do lusco-fusco de uma alvorada de primavera, ao luz do luar do verão numa noite de lua cheia, descrevendo tudo com detalhes.

Achei bem diferente da maioria dos romances do séc XIX que eu estava habituada ler. Esse livro geralmente é classificado como um romance gótico e de fato tem muitos elementos desse gênero, o que faz de um enredo aparentemente simples, um instigante suspense. O que mais gostei na narrativa, foi justamente as viradas de enredo, que dão bastante emoção para história alimentando a curiosidade pelo desfecho, o que nos leva a ler com certa velocidade. Certamente, uma narrativa bem elaborada com personagens bem construídos.

POSSÍVEIS LEITURAS

Deixo aqui algumas observações que acho que valem a pena prestar atenção nessa história, lembrando que essa é a minha leitura, cada um pode e deve fazer a sua. Prometo me esforçar para não dar spoilers, mas alguns pontos são inevitáveis de se comentar para poder expor minha opinião sobre a obra.

Apesar dessa história, ser vendida como uma história de amor, particularmente não vi bem assim. Pra mim trata-se de um belo exemplo de uma relação abusiva, com direito a crime passional e tudo mais. É muito mais trágica do que romântica, um bom thriller.

Desde o começo me incomodou muito a figura do marido. Cara estranho, rude, mau humorado, quase um bipolar. Suas mudanças repentinas de humor, fazem dele uma figura sinistra desde o início. Fica claro que há algo de muito errado com ele e no final confirmamos isso. Mesmo considerando que talvez esses traços da personalidade poderiam ser pistas deixadas propositalmente pela autora para nos fazer entender lá no final as atitudes dele, me incomodou bastante durante a leitura. Tive raiva dele do começo ao fim. Lia e pensava, que cara insuportável! Quem aguentaria casar um tipo desses? Aff!

Tem outro detalhe sobre o personagem Maxim de Winter que observei depois de ver os dois filmes adaptados desse livro. Ele não foi tão bem representado no cinema em nenhuma dessas versões de Rebecca. Acho que sua personalidade obscura foi um pouco suavizada, até mesmo no famoso filme do Hitchcock que, mudou consideravelmente o final da história. O que Maxim faz e que o torna esse ser esquisito, não foi por acaso como é mostrado no filme. Ele tem consciência do que faz e é movido por um ódio reprimido. Tanto que no final do livro ainda diz que está satisfeito pelo que fez e se tivesse que fazer novamente, o faria do mesmo modo. O cinema (versão de 1940 e a recente de 2020) suavizou muito esse ponto.

E não se trata aqui da velha questão filme x livro, até porque pra mim essa questão não existe, cada linguagem tem seus meios de nos contar uma história. Mas é inevitável observar essas diferenças e analisar as soluções encontradas para elas. A solução que Hitchcock encontrou para explicar os atos de Maxim, foi uma solução machista e que na minha avaliação compromete a interpretação da história.

Agora sobre a personagem narradora que não tem nem nome, mas vamos chamá-la de Madmoiselle, como se referem a ela no livro. Quem é ela? É uma moça pobre, órfã, sonhadora e excessivamente imaginativa. Tudo ela imagina, antecipa, fantasia...é insuportavelmente insegura, ingênua e carente. Uma parte desse excesso de insegurança pode até estar relacionada com o fato de ser muito jovem, uma vez que insegurança e juventude tem tudo a ver, mas ainda sim chega a ser insuportável o quanto essa insegurança a torna dependente emocionalmente de Maxim, resultando numa relação abusiva. Pois, ele a subjuga o tempo todo, tem atitudes machistas e egoístas, só pensa em seus próprios problemas, valoriza demais a juventude, a ingenuidade numa mulher e critica posturas femininas mais firmes, mais maduras. E o que nossa protagonista faz? Aceita tudo isso e ainda pede perdão, numa postura completamente submissa. Particularmente, não chamaria isso de amor. Mas o momento em que ela decepciona mesmo é quando se torna cúmplice de Max em dado momento da história. O que nos leva a observar o contraponto entre as “esposas”. Já que Rebecca, a finada, era madura, decidida e de personalidade forte, o oposto de Madmoiselle.

A personagem Rebecca, que dá nome ao romance e que só conhecemos através dos relatos de outros personagens, no começo nos parece apenas mais uma típica mulher da alta sociedade. A senhora de Menderley, cujo bom gosto e simpatia a tornaram adorada e admirada por todos. Se vestia muito bem, muito elegante e organizava bailes memoráveis, uma anfitiã de alto nível. Porém, é no relato de Mrs. Denvers e na confissão Maxim, que vamos conhecer Rebecca mais detalhadamente. E vamos compreender porque ela era essa mulher tão intensa e sedutora, que nem a morte e nem o tempo apagou sua presença.

E aqui coloca-se uma questão interpretativa bem interessante do enredo, pois se você olhar para Rebecca com os olhos de Mrs. Denvers conhecerá uma mulher muito à frente de seu tempo e da hipocrisia da sociedade que a cerca. Revelando-se uma mulher de personalidade forte, intensa, sensual e decidida a viver sua sexualidade. E sendo consciente do lugar que a sociedade reserva às mulheres, decide zombar na cara da burguesia inglesa, usando Maxim e Menderley para isso. Uma mulher que faz o que quer, não se prende às convenções sociais, é ousada como muitos homens se julgam no direito de ser.

No entanto, se olharmos para Rebecca com olhos de Maxim, ela não passa de uma manipuladora cruel, interesseira, autoritária. E talvez, justamente por isso tenha morrido, por ser uma mulher que ousava tomar decisões e desafiava e atacava o marido.

Há quem julgue Rebecca e há quem a ame. Essa provocação plantada no enredo, dá um tom bem desconcertante na história. Se foi proposital, ou não, fica difícil saber. Mas ao ler com cuidado, a enxergamos e isso apimenta a leitura.

Esse tom provocativo no acompanha do começo ao fim, numa linguagem que apresenta certas formalidades nos diálogos devido à época e posição social dos personagens principais, porém fluida. E para nos prender a autora cria situações bem conflituosas, parte delas como fruto da imaginação de Madmoiselle, e parte como pistas para os mistério que envolve Rebecca. E como todo bom suspense, tem um final surpreendente.

REFLEXÕES PARA ALÉM DO FANTASMA DA SEGUNDA ESPOSA

Esse livro traz um enredo bem construído, cheio de detalhes e questões que servem de gatilho para vários debates sobre a condição das mulheres ontem e hoje, sobre família e propriedade. Ficaria difícil comentar todos os pontos relevantes numa resenha só, portanto coloquei aqui o que achei mais impactante na leitura. Mas obviamente, é possível extrair muito mais. O que torna essa leitura interessante pra além da diversão, nos fazendo pensar e discutir questões sociais que tangem nossa realidade. Ler por diversão é muito bom, mas ler e refletir os temas da história é melhor ainda.

Bem e daí você pode estar pensando, ah mais tudo bem estamos falando de uma história contada no século passado, hoje em dia as coisas não são mais assim. Só que não. E é justamente por isso, que precisamos ler e discutir Rebecca.

Aparentemente, as questões e valores colocados na história são do século passado, meras representações dos costumes e do papel da mulher naquela época. Porém, essa visão do papel da mulher na sociedade vem mudando, devagar mas vem, afinal já não se pode dizer que o papel da mulher é servir ao marido, como se dizia há séculos atrás. Por esse prisma, podemos nos atentar para as questões mais profundas do enredo como dependência emocional, dependência financeira, casamento de aparências, liberdade sexual feminina, o dilema do divórcio e feminicídio, estaremos tratando de questões bem atuais. É claro que no livro tudo isso é um pouco romantizado e floreado, tanto que essa história é vendida até hoje como “uma deliciosa história de amor", quando não é. Por isso, precisamos ler, discutir e rever nossos conceitos sobre esses temas e talvez esse tipo de romance possa ser uma boa porta de entrada para debates mais profundos.

OBSERVAÇÃO:

Sobre a suposta questão do plágio que Daphne Du Maurier teria feito do livro A Sucessora de Carolina (tem resenha aqui no Recanto), e que ela comenta em seu livro de memórias (Oito décadas), escrevi outro texto somente sobre isso, que você pode ler aqui Recanto ou no blog https://okarapoetica.blogspot.com.

Nesta resenha fiz questão de dar ênfase a minha leitura e interpretação da obra Rebecca, por ter encontrado nesse romance muitos temas pertinentes para reflexão e debate sobre muitas questões sociais tão pungentes em nossos dias.

SOBRE A AUTORA:

Daphne du Maurier nasceu em Londres, Inglaterra, a de maio de 1907. . Filha de Gerald Du Maurier, famoso ator inglês, e neta de George Du Maurier, escritor de renome, Dapnhe foi criada e educada dentro do lar, segundo os padrões comuns às famílias abastadas da época.

Aos dezoito anos viajou para Paris, onde permaneceu durante seis meses, aprendendo a língua e literatura francesa. Na adolescência, escrevia contos e poemas, revelando influências de Katherine Mansfield, Mary Webb e Guy de Maupassant.Ao longo de sua carreira, escreveu mais de vinte obras, entre as quais se destacaram: Jamaica Inn (A Pousada da Jamaica), em 1936; Rebecca, em 1939, The King's General (O General do Rei), em 1946; e The Parasites (Os Parasitas), em 1949, dentre outros.

Nos últimos anos de vida, deixando de lado os temas basicamente sentimentais, procurou desenvolver outros gêneros. Assim, dentro da ficção científica, escreveu o conto The Birds (Os Pássaros), onde as aves se organizam e questionam o domínio do homem sobre a natureza, e The House on the Strand (O Espião do Passado), onde utiliza o tema da viagem através do tempo.

Grande parte da sua obra foi adaptada para o cinema, principalmente pelo mestre do suspense Alfred Hitchcock, que filmou Jamaica Inn, The Birds e Rebecca , pelo qual ganhou um Oscar de melhor argumento adaptado.

Daphne Du Maurier foi nomeada Dama do Império Britânico.

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Karina Guedes
Enviado por Karina Guedes em 26/01/2021
Reeditado em 09/11/2023
Código do texto: T7168908
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