A mineira Dalva Silveira, historiadora por formação e paixão, cresceu ouvindo e apreciando os grandes nomes da nossa música popular. E foi a partir da sua mente aguçada, que passou a se interessar pelas letras das músicas e pelas histórias contidas por detrás das canções.

Não foi diferente ao ter contato com a obra de Geraldo Vandré. O impacto foi tal na alma de Dalva que, ao buscar obter o título de Mestre em Ciências Sociais, realizou uma cuidadosa pesquisa sobre a vida e o contexto histórico da obra do artista, que fundamentou a sua dissertação e foi a origem desse livro precioso, que completa dez anos de lançamento quando escrevo esta resenha.

Vandré e as suas canções de profundos significados e impacto social que marcaram uma geração, formam o fio condutor de um período crítico do nosso país, que mergulhava num dos períodos mais tristes da nossa história. “Geraldo Vandré – A Vida não se Resume em Festivais” vai muito além de um livro sobre o artista em si. A fã ardorosa, que mora na alma de Dalva Silveira, contém os seus impulsos ao permitir que a pesquisadora mergulhe de forma imparcial em todo o contexto da história que cerca este que merece, com toda a honra, o epíteto de ‘mito’.

O livro perpassa a explosão da era dos festivais, que inicia com o Festival de Música Popular Brasileira, iniciado pela TV Record em 1960 e sequenciado em 1965 pela TV Excelsior. Os festivais voltariam então à TV Record a partir de 1966 até 1969. Em 1966 ainda houve a transmissão pela Excelsior. Em paralelo, a Rede Globo também criaria o Festival Internacional da Canção, que permaneceu até 1972. Enquanto ocorriam os festivais que revelavam artistas como Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Edu Lobo, Nara Leão, Elis Regina, Roberto Carlos, dentre outros, o país fervilhava sob a ditadura militar e, em 13 de dezembro de 1968, teve o seu ponto alto com o decreto do Ato Institucional Nº 5 (AI-5), emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva.

Não há como desvincular a figura de Geraldo Vandré do período pós golpe de 1964 até o AI-5. Nesse período explodiram as canções de protesto que, por consequência, invadiram os festivais de música. Geraldo Vandré se tornou o compositor mais aclamado dentro desse contexto, uma vez que as suas canções continham uma crítica ácida, direta e certeira, sem meias palavras, ainda que, por vezes, usasse metáforas. Um bom exemplo do seu estilo é “Disparada”, composta junto com Théo de Barros e interpretada por Jair Rodrigues no festival de 1966 e vencedora daquele ano.

 

“Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei

 
Então não pude seguir
Valente lugar-tenente
De dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente

 
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar”.

 
(Trecho da canção “Disparada”)

 
Em 1968 as canções de protesto já eram entoadas e distribuídas por todas as principais cidades do país, o que deixava o Governo em estado de alerta. Para deter uma latente e potencial reação da sociedade, que era instigada por tais canções, era preciso ‘calar’ os portadores desse estandarte de tanta comoção social. Alguns setores da sociedade passam, então, a serem usados para este fim. “A canção, como principal veículo cultural e ideológico da esquerda, passou a sofrer duras críticas de intelectuais que militavam, sobretudo, no movimento estudantil”. (pag. 60)

E foi dentro desse contexto, no Terceiro Festival Internacional da Canção, da Rede Globo, que Geraldo Vandré apresentou a sua obra prima e, a partir de então, precisou ressignificar toda a sua existência. Era a música “Pra não Dizer que não Falei das Flores”, ou, como ficou popularmente conhecida, “Caminhando”.

 

“Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Caminhando e cantando e seguindo a canção

 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

 
Pelos campos há fome em grandes plantações
Pelas ruas marchando indecisos cordões
Ainda fazem da flor seu mais forte refrão
E acreditam nas flores vencendo o canhão

 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

 
Há soldados armados, amados ou não
Quase todos perdidos de armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição
De morrer pela pátria e viver sem razão

 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

 
Nas escolas, nas ruas, campos, construções
Somos todos soldados, armados ou não
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não

 
Os amores na mente, as flores no chão
A certeza na frente, a história na mão
Caminhando e cantando e seguindo a canção
Aprendendo e ensinando uma nova lição

 
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer
Vem, vamos embora, que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora, não espera acontecer

 
Vem, vamos embora...”
 
(Pra não Dizer que não Falei das Flores)

 
A canção não venceu o festival, apesar de ter sido a mais aclamada num Maracanãzinho lotado. No livro, Dalva Silveira nos conta, em detalhes, as razões e os bastidores dessa história.

O ano termina com a assinatura do Ato Institucional e, a partir daí, o exílio de Vandré, Caetano e Gil, dentre outros, as metáforas de Chico, o nascimento do mito e do advogado Geraldo Pedrosa de Araújo Dias.

Em relação à partida de Vandré é importante citar a composição, junto com Geraldo Azevedo, a bela Canção da Despedida. Um exemplo da beleza que brota da aridez da alma dos poetas:

 

“Já vou embora
Mas sei que vou voltar
Amor não chora
Se eu volto é pra ficar


Amor não chora
Que a hora é de deixar
O amor de agora
Pra sempre ele ficar


Eu quis ficar aqui
Mas não podia
O meu caminho a ti
Não conduzia


Um rei mal coroado não queria
O amor em seu reinado
Pois sabia
Não ia ser amado


Amor não chora
Eu volto um dia
O rei velho e cansado
Já morria


Perdido em seu reinado
Sem maria
Quando me despedia
No meu canto lhe dizia

Já vou embora
Mas sei que vou voltar
Amor não chora
Se eu volto é pra ficar”

 
(Canção da Despedida)

 
O livro nos apresenta um Geraldo Vandré de personalidade forte e de um ideal muito genuíno. O ser humano Geraldo não se vendeu ao mercado sensacionalista e se posicionou contra o que chamou de ‘canção panfletária’.

“Geraldo Vandré – A Vida não se Resume em Festivais” nos convida a refletir as ameaças dos nossos dias. Na página 46, ao refletir sobre o golpe de 1964, a autora busca uma resposta para o fato improvável, e acontecido, de um governo “eleito pelo voto direto e com boa capacidade de mobilização popular” ter “sido derrubado sem a menor resistência”. E então ela encontra uma possível resposta que ainda é muito atual: “havia faltado a conscientização do povo”. Lamentavelmente, eu concordo que essa conscientização, que já faltava naquela época, ainda é ausente em nossos dias. E por isso corroboro com o complemento de que cabe aos artistas e intelectuais a responsabilidade de usar as atividades culturais para trazer luz sobre as trevas que nos ameaçam cada vez mais próximas.

Ainda hoje há um grande interesse em desqualificar as vozes dos professores, dos dramaturgos, dos escritores, dos músicos. É preciso desqualificar os livros, como bem tentou o governo do estado de Rondônia, no dia 06 de fevereiro de 2020, ao listar 42 livros que deveriam ser retirados das bibliotecas escolares por serem doutrinadores e subversivos. Dentre os livros proibidos, estavam autores clássicos e contemporâneos da nossa língua, como Machado de Assis, Rubem Alves, Rubem Fonseca, Mário de Andrade, Ferreira Gullar, para ficar apenas em alguns citados. Ainda tentam “liquidar a cultura viva do momento”. (pag. 100)

Geraldo Vandré, o artista, morreu, segundo o homem Geraldo Pedrosa de Araújo Dias. Mas por mais que tente, é impossível, diante da história, renegar ao seu legado de luta, posicionamento e opinião. A história de Geraldo Vandré ainda não se encerrou. Ele ainda respira sob a pele e na alma de Geraldo Pedrosa. A sua história precisa ser conhecida pela geração atual, tão carente de referências e de conhecimento histórico.

O livro de Dalva Silveira mantém essa tocha acesa, passando àqueles que fazem a história de hoje, e aos que escreverão o futuro, as lições do passado, para que não se perca esse olhar tão necessário no retrovisor, enquanto se caminha para a frente.

 

“Caminhando e cantando e seguindo a canção
Somos todos iguais, braços dados ou não”.


Vandré retornou aos palcos para uma apresentação em 22 de março de 2018, em João Pessoa, estado da Paraíba. No espetáculo, emprestou a sua voz por pouco mais de 30 minutos, intercalados, dos 105 minutos totais do evento. “Vandré surpreendeu e se emocionou ao entoar “Pra não dizer que não falei das flores (Caminhando)” junto a um coral de mais de 500 vozes na plateia da intimista sala de concertos do Espaço Cultural José Lins do Rego.” (reportagem de Taiguara Rangel, para o Portal G1) *

 


Título da Obra: Geraldo Vandré – A Vida não se Resume em Festivais
Autora: Dalva Silveira
Fino Traço Editora, 2011
ISBN: 978-85-8054-016-1
Nº de páginas: 184
Foto do livro para a resenha: Jefferson Lima


* https://g1.globo.com/pb/paraiba/musica/noticia/geraldo-vandre-faz-show-apos-50-anos-e-se-emociona-ao-cantar-caminhando-na-pb.ghtml Acesso em 27/06/2021.

Jefferson Lima
Enviado por Jefferson Lima em 28/06/2021
Reeditado em 21/07/2023
Código do texto: T7288335
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