RESENHA, A MENINA QUE CAVAVA COM A CANETA

Maria Jeane Souza de Jesus Silva*

Mestra em Educação e Diversidade – UNEB

Breno Procópio de Jesus Silva*

Aluno do 8º ano – Escola Reino da Alegria

CORREIA, Sarah. A menina que cavava com a caneta. Lura Editorial, 2015.

Sarah Correia é professora e escritora de Monte Santo, sertão da Bahia. Graduada em história e Pós-graduada em História do Brasil pela Instituição Centro de ensino Superior Vale do São Francisco de Pernambuco. Atualmente é Mestranda do ProfHistória pela Universidade Federal de Sergipe – UFS e autora de Shaira e a Saudade que foi publicada pela mesma editora em 2019.

“Será que quando a gente morre a gente leva os livros lidos?”

(CORREIA, 2015)

A epígrafe utilizada no início desta resenha é um encerto da obra – A menina que cavava com a caneta – que tem como protagonista, Alice, mas não é a Alice do País das Maravilhas, e sim, uma menina de olhos grandes que enxergava como uma águia e vislumbrava um mundo cheio de perspectiva; quebrava correntes enferrujadas, andaimagens (scaffoldings) que reforçam uma cultura do aparthaid entre tantas outras meninas que estão fadadas ao determinismo e ao patriarcado. Órfã de sua mãe Maria Júlia, foi criada pelo pai Manoel que sofria de alcoolismo e pelas irmãs semianalfabetas, Angélica, Conceição e Catarina. Devido as condições socioeconômicas, ela e as irmãs foram obrigadas, pelas circunstâncias da vida, a trabalhar como domésticas; trabalho que não agradava a Alice, para ela os livros eram sua fonte de conhecimento e com eles acreditava que um dia poderia mudar sua história e a vida de sua família.

A obra está dividida em seis capítulos, a saber:

Capítulo I, “Começando a cavar”; capítulo II, “Enfrentando os Medos”; capítulo III, “A primeira porta”; capítulo IV, “Passando pela porta!”; capítulo V, “Os atalhos da vida” e capítulo VI, “A menina que cavou com a caneta!”.

Logo na premissa da obra, a autora chama a atenção para um problema social que afeta várias famílias no Brasil e no mundo - o alcoolismo - considerada também, doença pela Organização Mundial da Saúde. Além do alcoolismo de seu pai, Alice enfrentava diversos problemas e perdas, dentre elas, a partida de sua avó para São Paulo que morreu logo depois e a morte de sua irmã Conceição acometida por um AVC (Acidente Vascular Cerebral).

Alice, tenta mudar a sua vida e a das pessoas que a cercam através da leitura. A menina não aceita o pouco que a vida teimou em lhe oferecer; corre atrás do seu sonho e faz o possível para levar junto com ela, seu pai e as irmãs que viviam com “vendas nos olhos”. Utilizava a caneta como instrumento para quebrar velhas correntes enferrujadas que insistiam em dificultar o caminho que escolheu descobrir. Nessa trajetória, ela conhece Bruno que lhe foi apresentado por Eurídice, sua melhor amiga.

Alice e Bruno passaram a estudar na mesma escola, mesma classe, 3º ano do Ensino Médio. Descobriram várias afinidades, dentre elas a paixão pelos livros. Diferentemente da prima Eurídice, o rapaz gostava de ler e tinha uma biblioteca invejável.

Como na obra de “O Pequeno Príncipe” do autor Antoine de Saint-Exupéry, “tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas” e Bruno cativou Alice ao presenteá-la com um livro que ela desejara ter por muito tempo – a história triste de uma princesa que virou Imperatriz do Brasil –. Sendo Alice apaixonada pelas aulas de redação, não seria coincidência do destino que ela ganhasse o tal livro justo na aula de redação?

A autora cava várias histórias, vai até o País da Maravilhas, abre a Caixa de Pandora, encoraja o empoderamento feminino representado pelas referências literárias de Alice, e, destaca ainda, o romance entre o casal protagonista, como a cena do primeiro beijo que foi o beijo mais demorado e impactante daquela cidadezinha no interior do sertão da Bahia. Eram de mundos totalmente opostos, chegavam a ser antagônicos. Eram como Eugenio e Margarida, em “O seminarista”. Separados pelas diferenças dos mundos, porém, Alice não morreria e Bruno não enlouqueceria linkando a obra supracitada. Na noite de Natal eles se entregaram um ao outro no casarão eternizados pela poesia de Vinicius de Moraes e fizeram amor por horas.

Após vários momentos inesquecíveis entre eles, Bruno foi embora por atalhos da vida. As intrigas de sua prima Eurídice fizeram com que eles mantivessem distanciamento físico, mas não sentimental. Não era uma briga entre Capuleto e Montecchio que iria separá-los, fazendo alusão à obra Shakespeariana. Alice ficou de coração partido, entretanto, os livros o único meio de refúgio que ela possuía, fez “Cavar com a caneta”, embora não recebesse nenhuma linha escrita, nenhum recado de seu amor. Lia cada vez mais, escrevia cada vez melhor!

Com base no título e suas ilustrações, há o destaque para a metáfora, cavar com a caneta, o termo metáfora, conforme o dicionário Oxford Languages (on-line), é a designação de um objeto ou qualidade mediante a uma palavra que designa outro objeto ou qualidade que tem com o primeiro uma relação de semelhança. Dessa forma, a palavra cavar simboliza escrever histórias, sonhos, buscar as palavras certas para falar dos sentimentos, da vida não muito fácil, como tantas outras vidas do sertão. Para Alice, escrever significava liberdade, altruísmo, vitalidade, era a coisa mais importante de sua vida, pois ela libertaria suas irmãs da ignorância e do pessimismo, como faz no início do capítulo V, ao contar histórias cavadas para Angélica e Catarina dos tais livros que ela esperançava abrir portas.

No enredamento da história, há também, um personagem crucial, Dr. Thiago que se torna um anjo sem asas na vida da família de Alice. Ele ajudou no tratamento de seu pai Manoel que infelizmente não tinha apenas uma doença crônica causada pelo alcoolismo, mas um câncer terminal no pulmão. A menina de olhos grandes agarrada ao seu pai procurou forças no poeta que tanto amava, que decerto fora emprestado ao seu progenitor ao pedir que lesse algo para ele. Em um dos trechos proferido pela menina se lê: “Quando a velhice vier você já saberá das armadilhas, das feridas, dos atalhos e dos atalhos da vida”.

Esta obra nos convida a entrar em um mundo onde a leitura e a escrita são chaves para abrir portas que nos levem aonde desejarmos. Uma história sobre leitura, pessoas que chegaram, foram embora ou marcaram nossas vidas de alguma forma. É possível perceber, ainda, que a amizade verdadeira jamais pode ser diminuída, e tal qual o amor, podem ser eternizados nas palavras escritas.

Observa-se na obra a intertextualidade com outras leituras, dentre elas O Pequeno príncipe, O Conde do Monte Cristo, Tristão e Isolda, Olga Benário, A caixa de Pandora, Poliana Moça, O Seminarista, Romeu e Julieta, dentre outras. É um convite a emergir em um mundo onde a leitura e a escrita são chave para abrir portas que nos levam aonde sonharmos.

Umas das cenas mais marcantes destacadas por Correia (2015), foi no momento em que Dr. Thiago abre a porta que Alice tanto esperava: ele mostrou suas escritas a amigos influentes que se interessaram por publicar tudo o que ela pudesse escrever. A menina que cavava com a caneta precisou vencer seus próprios medos, depois de muito insistir, conseguiu abrir a porta da vida que tanto queria: tornou-se escritora, reconciliou-se com Bruno, após serem separados pelos infortúnios da vida. Alice e Bruno eram de classes sociais diferentes, mas os livros os aproximavam.

São muitas histórias resumidas no romance, muitas dores, saudades, reencontros, o mais importante deles – o de Alice e Bruno – que no lançamento de sua obra, um autógrafo muito especial assim foi escrito: “Para o amor da minha vida inteira. Você foi o livro da minha vida”. Neste ímpeto, a autora traça as últimas linhas de sua escrita, transformando o enredo num grito de liberdade, vitória, pois, naquele momento a protagonista se encontrava realizada, conquistou o sonho de ser escritora e se permitiu abraçar e beijar Bruno no casarão que serviu outrora, para as descobertas mais íntimas dos autores apaixonados.

Obra consultada:

SILVA, Maria Jeane, S. J; et al. HQ e multiletramentos: a formação do sujeito-autor mediada por tecnologias digitais. In: Úrsula C. A., et al. Tecnologias digitais e (Multi)letramentos: Inflexões teórico-metodológicas para a formação do professor. Editora Mondrongo, 2020, p. 83 a 100.