Zagueiro da poesia

Lançamento recente da Franco Editora, de Juiz de Fora, MG, ABC do Zezinho, com assinatura de Maria de Lourdes Abreu de Oliveira e ilustrações de Dilce Laranjeira, é certamente dessas poucas obras infantis que seduzem o público adulto.

A autora escolheu como temática de sua obra a vida do menino Zezinho, de pouco mais de dez anos, que, sob forma de ABC, vai se apresentando aos leitores, falando dos amigos, dos pais, dos avós e até de suas próprias convicções!

Na parte reservada à letra A, José Maria da Silva diz que aprendeu a gostar de seu nome depois que a mãe lhe deu explicações etimológicas (“Maria queria dizer de todos os mares e Silva, habitante da floresta”) . Não era então nome de mulher, como a galera da escola andava dizendo. Depois o narrador, valendo—se da primeira pessoa, sua marca registrada ao longo de todo o texto, fala do seu adorável cão, que “é de abril e se chama Abel, nome que rima com mel”. Mas não só isso. Abel “Abraça, acaricia, acena amorosamente, diz adeus, até amanhã, até à vista, tudo, abanando agitadamente o rabo”. Outro não poderia ser o fonema escolhido para se descrever a agitação e a alegria do cão; afinal o /a/ é o mais aberto dos sons vocálicos. E assim a autora vai tirando vantagem das potencialidades melódicas da língua!

Talvez não seja gratuita, também, a escolha do /o/, vogal fechada, sisuda, para refletir sobre o obscurecimento que as mensagens da televisão geram nas consciências desavisadas: “E elas nos oprimem a vontade, obscurecem nosso olhar, roubam nosso direito de opção, isto é, de escolha”. Na verdade, o fonema /o/, além do grau médio de fechamento, é uma vogal arredondada, apta, portanto, a sugerir o caráter cíclico do embotamento gerado pelas mensagens da mídia televisiva. O aspecto mais relevante do texto são as potencialidades significativas, sugestivas e melodiosas dos significantes linguísticos. Não só os vocálicos, claro! Os fonemas consonantais estão lá a motivar aliterações das mais sugestivas como em “Puxa! Que paz mais prazerosa”, em que o /p/ da paz parece irradiar-se para a interjeição e para o adjetivo, numa sugestiva associação fonético—semântica ou em “Tudo termina triunfantemente em ternura”, em que a reiteração do /t/, sobretudo no advérbio, realça a força da ternura como sentimento acomodador de tensões.

A autora empresta sua cultura e sensibilidade ao narrador, que até se permite algumas críticas contundentes (tudo muito poético!) aos meios de comunicação, à devastação ambiental, à falta de escola para as crianças, ao massacre das culturas indígenas. Mas o discurso crítico de Zezinho apenas reflete o que aprendeu com os pais e professores. Ele não se apresenta melhor que os colegas, à moda de um menino-prodígio, e sua fala não é doutrinadora. O que se transmite ao longo de toda a obra é a beleza melódica de nossa língua e, nesse sentido, o texto, com sua envolvente e terna mensagem, torna-se apenas um pretexto. Lembremos que o narrador é apaixonado por música, pelo “límpido piano... O metálico triângulo... O livre violão e a melancólica flauta... O luxento violino e a maluca bateria... O luminoso saxofone ...” E parece mesmo não haver som mais apropriado para se falar de música do que o fluido /l/... Na leitura de José Lemos Monteiro, no livro Estilística, o fonema /m/ se presta à evocação tátil de suavidade. O ABC parece explorar muito bem esse aspecto, no plano, porém, das sensações auditivas. Ainda quando a temática é a música colhe—se, dentre outros, o seguinte segmento, em que se conjugam os ditos efeitos expressivos do /m/ e do /l/: “Ai, com a música eu mergulho num mundo maravilhosamente mágico, lindamente livre, legal”.

Zezinho procura usar a linguagem dos colegas, e expressões como “de montão”, “de carteirinha” e “me amarrei” fazem parte de sua narrativa, bem como incursões metalinguísticas para explicar termos possivelmente desconhecidas de seus amiguinhos leitores (“Note, observe: onírico é sinônimo poético de sonhador.”). Em certo momento, sentindo—se meio sofisticado, ele chega a se dar um puxão de orelhas: “Um garoto dessa idade com linguagem de marmanjo!”.

Conveniente opção discursiva é a escolha do presente do indicativo para designar fatos habituais ou contemporâneos do momento que o narrador vivencia, ou mesmo para fazer comentários. As estruturas sintáticas são também simples, a maioria delas orações absolutas ou coordenadas, como convém aos livros infantis, valendo-se também a autora das potencialidades do assíndeto em séries sinonímicas enfáticas como em “Não se acovarda nunca, não se amedronta, não se atemoriza”, em que o grupo acovarda/amedronta/atemoriza sugere certas gradações de sentido não captadas pelos dicionários da língua.

Na melhor tradição dos autores modernistas, Maria de Lourdes Abreu inicia as orações com pronomes oblíquos (“Se acamarada aos meus amigos... / “Se embruxa, esbravece... “ e usa o verbo ter em sentido existencial (“...tem muita criança que não consegue estudar”). Curiosamente, entretanto, seu personagem Zezinho não amaldiçoa a gramática. Os verbos no indicativo (tão usados por ele!) e no imperativo são considerados coisas interessantes e, na seção referente à professora, a aula de gramática é citada como parte do programa, juntamente com a geometria. A essa atitude do narrador certamente subjaz a escritora, renomada estudiosa da ciência da literatura e intelectual de formação clássica, para quem o conhecimento da língua é indispensável, para que se possa, num processo de profunda depuração, conciliar a lição dos gramáticos com a expressividade do idioma.

Certamente, a ortografia do português, muitas vezes fundamentada em bases etimológicas, tem sido um embaraço para crianças e adultos. Nas entrelinhas, a autora parece colocar no discurso de Zezinho essa sua preocupação buscando ensejar discussões sobre uma reforma de ortografia democrática. No capítulo referente à letra X, palavras como xá, xaleira e xapéu, despidas do ch de pouco charme, aparecem em grandes cartazes ou “topam fazer propaganda na televisão”, imagina onarrador. Essa carnavalização ortográfica está pautada no princípio de que se deva buscar, quando possível, representar cada som da língua por uma única letra. E há linguistas que defendem estudos dessa natureza!

Um livro célebre, cujo foco é a língua, é certamente Emília no país da gramática, editado em 1934, obra em que a literariedade de Monteiro Lobato está, em parte, a serviço do didatismo dos livros de português publicados naquela época. Nesse sentido, aquele trabalho sugere uma concepção de língua normativista, como um fim que se atinge pelo cumprimento de regras e conhecimento de conceitos de gramática, concepção totalmente destoante da que se apresenta no ABC em apreciação. Na última parte de seu texto, o simpático narrador diz que quer ser zagueiro. Ele foi, sim, zagueiro nas questões políticas levantadas. E certamente é zagueiro, um belo exemplo de zagueiro da poesia, que Maria de Lourdes Abreu de Oliveira inseriu com maestria no imaginário de nossas crianças e adultos, dispostos a ocupar meia hora de suas vidas com as páginas desse pequeno grande livro. Mais tempo, certamente, porque novas leituras, muitas vezes em voz alta, serão sempre muito prazerosas! (Resenha escrita em 2005)