A questão da imortalidade na visão de Clifford D. Simak

A QUESTÃO DA IMORTALIDADE NA VISÃO DE CLIFFORD D. SIMAK

Miguel Carqueija

 

Resenha do romance de ficção científica “Deixemo-los no Céu”, por Clifford D. Simak. Editora Livros do Brasil, Lisboa-Portugal, sem data. Coleção Argonauta 123. Tradução de Eurico da Fonseca. Capa: Lima de Freitas. Título original norte-americano: “We call them back from Heaven?”

 

Simak é um caso singular na história da ficção científica. Um dos grandes da era de ouro da FC norte-americana, suas obras tinham muito de fantasia, como as de Asimov tinham muito de policial. Simak envolve o leitor paulatinamente num clima surreal desenvolvendo problemas que geralmente atingem a humanidade como um todo.

Num futuro distópico Daniel Frost trabalha no Centro da Eternidade, que cuida da preservação dos seres humanos que são congelados antes de morrer. Nesse estranho mundo de amanhã as pessoas geralmente não morrem: quase todo mundo possui um transmissor implantado no peito, para chamar as equipes de socorro que cuidarão, se for necessário, do congelamento. E quem estiver para morrer recebe o congelamento, pois a vida toda pagou por cotas de eternidade (sic): a promessa é que a Ciência acabará com a morte e reanimará todo mundo. E para alojar toda essa gente promete-se até a transposição no tempo.

Entretanto um grupo rebelde e consciente da loucura desse propósito materialista desenvolve campanha subterrânea e espalha grafitagens com a frase “Deixemo-los no Céu!”, ou seja, deixem que as pessoas morram e vão para o Céu, única imortalidade que vale a pena.

Simak, em suas obras mais antigas, parece ateu, mas depois evolui para algum tipo de espiritualidade. Como nesta novela, onde um asceta, isolado numa ilha, faz tudo quanto é sacrifício para chegar a algum tipo de iluminação. É tudo em vão, até que a triste verdade lhe grita: ele também usa o transmissor para ser impedido de morrer. Ou seja, ele também deu as costas a Deus, embora depois reconheça numa alusão a Jesus Cristo: “Houve alguém que uma vez nos ajudou a todos — deu-nos o socorro de que nós continuamos a necessitar — e perdemo-los sem saber como.” E arremata: “Fomos abandonados. Deus voltou-nos as Suas costas.”

Na verdade é o Homem que abandonou a Deus. Quanto ao personagem principal, atravessa inúmeras agruras e é perseguido por vislumbrar a verdade: a farsa da imortalidade física, a loucura que envolveu toda a humanidade.

O diálogo entre Daniel Frost e Mona Campbell — a cientista que fugiu e se escondeu por descobrir a verdade que não podia ser revelada — é significativo. A morte não existe, é apenas uma transformação, pois a vida não pode ser destruída. “A morte é a conversão dessa propriedade a que chamamos vida noutra forma. Tal como a matéria se converte em energia ou a energia em matéria”, explica Mona. E ela também define o beco sem saída de uma raça que apostou numa imortalidade física com cada vez mais gente: “Não poderemos usar as viagens no tempo para cuidar do excesso da nossa população. Teremos de colonizar outros planetas ou de construir satélites no espaço ou tornar a Terra num enorme edifício de apartamentos — ou talvez tenhamos de fazer todas essas coisas”.

Nessa brilhante mensagem Simak mostra com maestria que o materialismo é de fato um beco sem saída.

 

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2021.