A Bíblia recontada por van Loon

 

A BÍBLIA RECONTADA POR VAN LOON

Miguel Carqueija

 

Resenha do livro “A história da Bíblia”, por Hendrik Willem van Loon. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro-RJ, 2020. Tradução: Monteiro Lobato. Prefácio: Mary del Priore. Ilustrações: Lelis. Título original: “The story of the Bible”.

 

Obra de fôlego do conhecido historiador holandês, é uma espécie de visão desse autor sobre o texto bíblico em suas muitas subdivisões. São perto de 300 páginas grandes e com letras pequenas, portanto bastante leitura.

A orelha desta edição afirma: “As histórias das sagradas escrituras são incomparáveis. Com seus personagens célebres, revelam os movimentos de nosso coração, lançam luzes sobre nossas fraquezas e fortalezas, dão-nos exemplos de conduta e nos enchem de esperança, bondade e desejos de praticar o bem”.

O que van Loon faz é recontar a seu modo as histórias bíblicas, com linguagem pitoresca mas não desrespeitosa, e sua própria interpretação e análise. Vejam este trecho da página 180:

“O Cântico dos Cânticos não é um livro religioso, mas significa a primeira prova de algo novo e muito sutil que havia aparecido no mundo.

No começo dos tempos a mulher não passava de uma besta de carga. Trabalhava para ele nos campos. Zelava-lhe do gado. Gestava-lhe filhos. Cuidava da sua comodidade — e em paga recebia os restos que sobravam da mesa do homem.

Mas tudo entrara a mudar. A mulher começava a ser reconhecida como igual ao homem — sua companheira. A que lhe inspira amor e o recebe. Sobre essa firme base de mútuo respeito e afeição, um novo mundo iria ser construído.”

(Acho que ele exagerou um pouco. Mesmo nos tempos anteriores à Bíblia existiam rainhas.)

A cuidadosa leitura da obra mostra que o historiador, sem se comprometer muito, narra as histórias da Bíblia como podendo ser verdadeiras, fictícias ou com alguma mistura de ficção com fatos históricos. Sobre os Dez Mandamentos, encontramos na página 65:

“E foi assim que ficaram os judeus com a sua Lei. Necessitavam agora de um lugar onde pudessem reunir-se para a adoração de Jeová, e Moisés ordenou que se construísse o tabernáculo, ou uma igreja de madeira coberta de toldo. Anos depois, quando os judeus passaram a viver em cidade, o tabernáculo foi construído de tijolos, mármore e granito, tornando-se o famoso Templo de Jerusalém.

Mas o tabernáculo tinha de ser conduzido de acordo com certas regras, mantidas por sacerdotes e a fidelidade da tribo de Levi fez que Moisés dela tirasse o corpo sacerdotal. Daí os “levitas” que aparecem em todo o decurso da história dos judeus.

Moisés ficou como uma espécie de rei sem coroa; e, de acordo com as ideias que o sogro lhe transmitia, estabeleceu que só a ele era dado apresentar-se a Jeová quando houvesse necessidade disso.”

“Rei sem coroa” é uma boa definição da chefia exercida por Moisés.

Como se vê, a narração de van Loon é descontraída, com algum espaço para o humor, mas desperta o interesse em ler a Bíblia, que é, afinal, o livro da humanidade, respeitada inclusive por muitos não-cristãos, como os muçulmanos. A tradução de Monteiro Lobato, que tanto ajudou a difundir os livros no Brasil, parece-me exemplar. A leitura “escorrega” fácil e prazeirosamente.

Não concordo com as observações sobre as datas em que foram escritos os Quatro Evangelhos, pois descobertas modernas confirmam que eles são do século I, portanto dos autores relacionados, Mateus, Marcos, Lucas e João.

Sobre o dilúvio, lemos (pg. 23):

“Vivia naqueles tempo um homem de nome Noé, neto de Matusalém (o qual vivera 969 anos) e descendente de Sete, um dos irmãos de Caim e Abel, nascido depois da tragédia.

Era Noé um bom homem, dos que procuram viver em paz com a própria consciência e o próximo. Se a raça humana tinha de começar de novo, Noé daria um bom recomeço.

E Jeová decidiu matar todos os homens, menos Noé e os seus. Chamou-o e mandou que construísse um navio, ou arca. Devia ter 450 pés de comprimento por 75 de largura e 43 de altura. Tamanho de um transatlântico moderno — e é difícil imaginar como Noé deu conta da incumbência.”

Assim, essa narrativa é descontraída e divertida, mais para familiarizar com a Bíblia quem não a leu. Não sei se o autor professava alguma religião mas seu livro é muito interessante como obra de lazer e informativa.

 

Rio de Janeiro,16 de agosto de 2022.