A volta de Gumercindo em 1989

 

A VOLTA DE GUMERCINDO EM 1989

Miguel Carqueija

 

Resenha da antologia “Os ciganos da estrela”. Nova Coleção de Ficção Científica GRD, São Paulo-SP, 1989. Tradução: Rocha Torres.

 

Gumercindo Rocha Dorea foi um lendário editor brasileiro, que nos anos 50/60 deu grande força à literatura de ficção científica, inclusive a nacional, incentivando diversos escritores do Brasil a se aventurarem no gênero, que ainda não tinha a popularidade que veio com produções cinematográficas.

Mas embora tenha publicado Dinah Silveira de Queiroz, Fausto Cunha, Jeronymo Monteiro, Zora Seljan, Guido Wilmar Sassi e outros autores nacionais, não pôde continuar por longos anos. Publicou esporadicamente nos anos 80 o romance “Só a Terra permanece” mas afinal, com o apoio do Clube de Leitores de Ficção Científica, obteve um breve retorno relançando a coleção com novos títulos a partir de 1989. Infelizmente este retorno foi efêmero e vários números planejados ficaram inéditos.

A presente resenha, escrita entre 10 e 19 de novembro de 1991, foi originalmente dirigida ao fanzine paulista “Megalon”, que o jornalista Marcello Simão Branco editou durante bastante tempo em São Paulo e onde assinei em vários números a coluna de resenhas “Galeria do Tempo”. O texto abaixo é inédito no Recanto das Letras. Aborda o volume 1 da nova fase da Ficção Científica GRD, que apresenta a novela do título e mais duas.

Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2022.

 

OS CIGANOS DA ESTRELA (The gypsies of the star), por Willian Lindsay Gresham.

Retornando, após longo inverno, a editora de Gumercindo Rocha Dórea voltou a editar sua coleção de ficção científica, recomeçando a numeração, e apresentando três autores no primeiro volume. “Os ciganos da estrela” é uma história estranha, mais voltada para os valores do espírito que para a tecnologia ou feitos materiais. O título gera uma idéia errada sobre o conteúdo, já que a trama se passa a nível rural e nômade, na superfície da Terra, num futuro incerto no qual a civilização regrediu. Através da narrativa de Fedar, jovem cigano com sangue “gorgio” (de habitante das aldeias) o autor recebe um apelo de romantismo. Ao se enamorar por uma garota de aldeia, Thene, eis como ele se expressa: “Era a primeira vez que eu ouvia o seu nome, e aquele nome era como o som do vento de verão aos meus ouvidos — e eu soube que o amor nascia em mim. Infelizmente a mensagem sobre o destino dos ciganos, remanescentes de um povo extraterrestre, e suas relações com os nativos da Terra — ora condutores, ora marginais para os nativos — corre num estilo morno e anacrônico, difícil de fascinar o leitor moderno. Não que eu seja contra o romantismo, mas certamente ele pode existir em tramas mais envolventes e convincentes, como as de Poul Anderson e Clifford Simak.

Não que a noveleta seja ruim, tecnicamente falando; é bem escrita e merece ser lida.

Eu diria apenas que ela é pouco interessante.

 

EM MÃOS HUMANAS (By human hands), por Algis Budrys.

Uma história, a meu ver, mais interessante que a anterior, mais complexa, seguindo a mesma linha de ficção científica humanista. O grande risco de tais obras, onde não pontifica a ação como nas “space-operas”, está em não serem convincentes. O drama do robô sem nome, abandonado numa terra estranha e que se torna, durante muitos anos, o mentor de uma civilização ascendente, não chega a comover. Também não entendo porque o robô, sendo tão inteligente e de certa forma humano, não possui nome — como seu colega da série “Perdidos no espaço”.

A humanidade do planeta onde o robô vai parar é lamentavelmente apática e desinteressada, aliás uma carneirada. Entretanto, na aldeia que acolhe o autômato, existem dois homens capazes de tomar iniciativas: o “Gansha” (líder) Kes Lorri e seu auxiliar Tyrrel Cige. Bem mais adiante no tempo surgem duas outras pessoas com personalidade: Lara Sern e Dorni Elin. A rápida transformação da aldeia numa civilização altamente adiantada, mais ainda que a terrestre, de onde veio o robô, seria devida a este, mais os três homens e a mulher supracitados. Isso no período de um século entre a fundação da aldeia por Kes Lorri e a chegada do robô; e mais cem até o retorno dos terráqueos. E com tudo isso um prato cheio de filosofagem sobre a evolução da civilização, o comportamento humano ou robótico e o progresso.

O paternalismo do robô em relação àquela civilização transparece diversas vezes: “Nos primeiros cinco anos em que Dorni trabalhou como engenheiro servo-mecânico na cidade, o Robô observou-o e ao seu trabalho de perto. A única probabilidade dominante em sua mente era a de que Dorni fosse o centro de alguma espécie de plano de longo alcance para instalá-lo como gansha após a morte de Tyrrel. Mas havia demasiados pontos contra isso”. E antes disso o autômato pensa: “Não lhes direi como construir uma nave espacial, mas lhes fornecerei as leis da física e da astronáutica nucleares — como fazer uso delas é algo que terá de britar de seu próprio cenário cultural”. O fundador da aldeia, Lorri, ao morrer também transmite instruções de paternalismo ao seu sucessor Tyrrel: “Dê-lhes o esboço, e eles trabalharão, suprirão os detalhes. Mas você têm de dar o esboço. Não têm curiosidade. Não procurarão as coisas... mas forneça-as, e eles a conduzirão, contanto que você continue insistindo”.

É com uma raça tão desinteressante que os personagens principais têm que lidar, a ponto de Dorni desabafar raivosamente ao robô Diretor do Porto: “Você pensava que eu era um daqueles lá? (...) Eu tenho quase vergonha de admitir que provenho do mesmo tronco. Eles não merecem o que Lorri e Robô lhes deram — são piores que você. Você recebe ordens apenas daqueles que o construíram; eles receberão ordens de qualquer um”. Fica difícil aceitar que uma raça tão medíocre construa civilização tão poderosa, só com o impulso de um ou outro gênio ou líder. Mas a ficção científica é isso mesmo — lida com extravagâncias.

Resta apontar a falta de educação do comandante da nave terrestre, que em termos de “padrões de contato” é uma completa negação.

Algis Budrys é um bom autor. Mas a sua novela é sociológica e requer paciência e atenção na leitura.

 

AS ARTES DE XANADU (Xanadu), por Theodore Sturgeon.

Autor muito prestigiado, porém irregular, assinando histórias de tessituras muito diferentes umas das outras, Sturgeon conta aqui uma fábula de uma civilização pós-diáspora da humanidade pelas estrelas. Bril, do planeta Kit Carson (?) desce no planeta Xanadu e se apresenta a Wonyne, filho do Senador Tonyne, e diz “Venho em paz”, o que é deslavada mentira. Chegando repleto de más intenções para com aquele mundo pacífico, põe-se a investigar as características insólitas daquele povo que não sofre necessidades materiais e que, com as forças da mente e a colaboração de todos, manipula a matéria a seu gosto.

Os diálogos são bem desconcertantes, refletindo o choque de mentalidades diferentíssimas. Bril pergunta ao Senador: “Quem é seu Governo?”, ao que o filho do senador interrompe: “Que é um Governo?” A história prossegue, desperdiçando páginas com o constrangimento (ou frescura) de Bril, que se recusa a comer na frente dos seus anfitriões, já que isso, pelos seus padrões, é uma indecência! E o que o desconcerta é que aquele povo faz tudo de forma muito aberta, sequer fechando suas casas para ocultá-las dos olhos externos.

Quando consegue, com a colaboração do povo local, um refúgio onde obtém a sua tão necessária privacidade, Bril entrega-se a edificantes racionalizações: “Para conquistar um planeta, tem-se de localizar o governo central. Se se trata de uma autocracia, rigidamente organizada até o cume, tanto melhor, o cume é pequeno e pode-se matá-lo ou controlá-lo e utilizar a organização. Se não há governo de forma alguma, alicia-se o povo ou se o extermina”. Só que tais raciocínios não davam certo com o povo de Xanadu, cujo sistema social e métodos industriais não se coadunavam com a mentalidade materialista do visitante-espião. Eles tinham tudo — inclusive a felicidade — sem aparentemente possuir coisa alguma.

Bril só começa a compreender depois de literalmente perder as calças, mas fiquemos por aqui. Essa história também possui deficiências de interesse. Talvez uma comparação esclareça o que eu quero dizer. O leitor comum ou médio provavelmente lerá com mais interesse uma novela da série Perry Rodhan, embora seja de ação linear e sem a profundidade ou seriedade de Sturgeon. Porque nem todos os autores combinam bem a seriedade de seu estilo e seus enredos com a capacidade de manter o interesse do leitor aceso.

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Resumindo, três histórias algo semelhantes entre si por constituírem ficção científica sofisticada e algo presumida, mas de efeito limitado. São também de difícil análise, por falta de maior definição: é difícil decidir por onde pegar cada história. Eis o paradoxo a que vôos filosóficos podem às vezes conduzir autores de FC: boa qualidade, numa análise friamente técnica, e pouca emoção.

A editora deveria ter colocado os nomes das três noveletas, com seus autores, na capa, pois assim como está fica parecendo que os três são autores de uma só história.

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No meu caderno manuscrito encontrei apenas dados sobre um dos autores:

“ALGIS BUDRYS – Nascido na Prússia Oriental (país que já não existe) em 1931, de nome completo Algirdes Jonas Budrys, vivendo nos Estados Unidos desde 1936, é também editor de FC além de autor de grande prestígio, embora pouco publicado no Brasil.”

Em complemento: ele faleceu em 2008, aos 77 anos.

Sobre William Lindsay Gresham, pesquisei agora, pois nada sabia desse autor. Nascido em Baltimore, estado norte-americanos de Maryland, teve uma vida conturbada e faleceu prematuramente em 1962, aos 53 anos, ferido por graves enfermidades, e, pelo que consta, por suicídio (dose excessiva de pílulas para dormir). No entanto, teve livro até filmado. A delicadeza de sua história neste volume contrasta com vida tão trágica.

Theodore Sturgeon, também norte-americano (Staten Island, 1918, falecido em 1985 em Eugene), esse é realmente um nome lendário na ficção científica do século 20. Romantizou o filme de Inwin Allen “Viagem ao fundo do mar”, que deu origem a famoso seriado de televisão. Tinha um estilo bem marcante e algo fantástico.

(Notas em 4 de outubro de 2022.)