O Coração das Trevas: o clássico de Joseph Conrad

Escrito pelo polonês Joseph Conrad em 1903, "O Coração das Trevas" logo tornou-se um marco na literatura inglesa, muito embora não fosse um livro escrito por um inglês nativo. No caso de Conrad, esse detalhe não fez diferença alguma. Magistralmente bem escrito, logo se percebe como o escritor labutou sobre as palavras, buscando não somente uma diversidade vocabular como também no esmero com que entregou ao texto uma sonoridade bela mesmo na tradução para outro idioma. Dizem que os livros bem escritos se fazem notar na riqueza das frases e sentenças da tradução.

Toda a trama se desenrola quando um velho marinheiro chamado de Marlow, funcionário de uma companhia mercantil inglesa, recebe uma convocação para trazer de volta a Londres um sujeito chamado de Kurtz. Marlow precisava se embrenhar nas entranhas do Congo, em plena África Negra, para rastrear o paradeiro do desaparecido mercador de marfim. Uma estranha mística circundava Kurtz. Depois de tantos anos sem contato com a civilização europeia, Kurtz - diziam nos entrepostos comerciais - aprendera a se misturar com as tribos africanas do entorno. Absorveraos hábitos locais, dominava a ritualística de culto aos deuses pagãos, entendia a forma como se processava a autoridade do poder político, discernia as relações de parentesco e o casamento. Em certo sentido, Kurtz se tornara um africano tribal, potencializando ainda mais a aura mística com que era visto pelos compatriotas.

Tratava-se de um homem difícil de domar. Mesmo imerso nos confins do esquecido continente africano, nunca deixara de remeter à Companhia Mercantil uma vultosa quantidade de marfim. Enviava muito mais marfim do que qualquer outro agente comercial em todo o continente! Todavia, tirando as remessas do marfim, ninguém tinha notícias de Kurtz.

O que aquele homem fazia no coração das trevas? Marlow foi procurar respostas ao empreender uma viagem de navio pela imensidão do desconhecido. Logo na entrada, uma surpresa! Um navio afundado no litoral parecia ter presenciado uma batalha contra nativos insubmissos. A imagem da quilha em destroços ofereceu a Marlow um breve registro do quão selvagem era a vida longe da calmaria londrina. Ao chegar no primeiro entreposto, a presença das centenas de africanos que iam e vinham - desempenhando funções braçais no mais absoluto silêncio - incomodou o velho marinheiro. Por que aqueles homens me mostravam tão submissos à autoridade do colonizador? Por que não se insurgiam se eram franca maioria?

O texto de Conrad foi considerado por muitos como base ideológica que justificava uma pretensa superioridade racial do "homem branco" europeu sobre os povos pretos da África. Em determinado momento da narrativa, enquanto Marlow passava por mais um entreposto comercial em busca do misterioso Kurtz, o protagonista espantou-se com a passividade dos africanos. Eram muitos os negros que transportavam caixas nas costas de um canto para outro em absoluto silêncio. Não demonstravam reação ou contrariedade em face dos colonizadores. Simplesmente cumpriam tarefas com uma resignação capaz de surpreender visitantes desatentos. Ora, essa observação crivada de preconceitos em relação aos africanos mereceu críticas. Será que Conrad agia como um agente imperialista? Será que o seu livro se situava no rol dos trabalhos racistas que afirmavam superioridade europeia sobre outros povos? São questões que merecem reflexão quando se comenta, em conjunto, a obra do anglo-polonês.

O livro mantém um tom de mistério em torno da personalidade de Kurtz. Nos entrepostos, ninguém era mencionado com mais respeito e admiração do que ele. A bem da verdade, o encontro real com Kurtz não fez jus ao enigma montado por Joseph Conrad. No momento mais visualmente emblemático do livro, nativos atacam o navio em que Marlow viajava. Flechas cortavam o ar vindas das duas margens do rio. Durante a refrega, entre gritos e disparos, um marinheiro morre atravessado por setas.  Sem armas de fogo com que sustentassem uma batalha prolongada, os africanos bateram em retirada, deixando um cenário de destruição no interior da embarcação. Mais tarde, Marlow vem a descobrir que o próprio Kurtz organizou o ataque ao barco do colonizador.

Quando o esperado encontro entre os dois marinheiros acontece, percebe-se logo que os anos no interior do Congo havia mudado feição, hábitos e personalidade do velho marinheiro Kurtz. O tórrido ambiente africano fizera com que o antigo colonizador se esquecesse da distante Londres e se tornasse parte da paisagem. O meio ambiente em que nos encontramos é capaz de determinar nossa personalidade? A mensagem do livro demonstra que sim.

Kurtz vive e morre no coração das trevas sem que alguém derramasse uma lágrima sequer. As referências passadas em torno do velho colonizador não existiam mais. Talvez ele mesmo não soubesse quem era. Kurtz havia se tornado parte da natureza e, quem sabe, uma vítima da colonização.

Quando se embrenha no interior, a face selvagem do homem civilizado aparece. O Congo só ofereceu a Kurtz a oportunidade de encarar a própria natureza animalesca. Por isso ele era tão temido, já que os outros funcionários da Companhia sublimavam a face oculta do que eram através do verniz das hipocrisias da vida em sociedade.

Fechamos o livro com a experiência de que Kurtz vivera e morrera como um mistério. Talvez esse incômodo em relação ao personagem principal de "O Coração das Trevas" apenas revele a nossa incompreensão em relação aos significados da cultura africana.

Humberto Serrabranca Campos
Enviado por Humberto Serrabranca Campos em 02/01/2023
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