O romancista da infelicidade

 

O ROMANCISTA DA INFELICIDADE

Miguel Carqueija

 

Resenha do romance “A filha do reverendo”, de George Orwell. Editora Pé da Letra, 2020. Título original inglês: “A clargyman’s daughter”. Tradução de Lívia Bono.

 

Publicado originalmente em 1935, este denso romance de George Orwell (1903-1950) acompanha outras obras do autor ao descrever, de forma impiedosa, a miséria humana, a infelicidade. Aqui acompanhamos o drama de Dorothy Hare, jovem de 28 anos, filha de Charles Hare, pastor da Paróquia de St. Athelstan no lugarejo de Knype Hill, em Suffolk, Inglaterra. A religião parece ser uma variante da Igreja Anglicana, com tendência católica. De qualquer forma a visão de Orwell é nitidamente materialista e bastante sarcástica em relação à fé cristã, até com alguns ditos que, francamente, não deveriam ter sido escritos.

Fora isso, o enredo é realmente impressionante ao mostrar o sofrimento humano. A vida de Dorothy é insossa: dominada pelo pai, que tudo exige dela, tratando-a como empregada. Mesquinho, mal-humorado, ele deve ao comércio em volta e não se preocupa em pagar, achando aquilo normal. Dorothy morre de vergonha, pois é ela quem faz as compras e tem que ficar pendurando. E precisa também cuidar dos assuntos paroquianos e lidar com crianças pouco interessadas, organizar teatrinhos para angariar fundos; para isso precisa bancar a artesã e confeccionar trajes para as crianças atuarem.

O excesso de trabalho e responsabilidade levam-na a um colapso da memória. Por infelicidade a fofoqueira da vila, Senhora Semprill, a vê quando o Senhor Warburton, um admirador de meia-idade, homem estranho e descrente, e que fala algumas coisas de bom senso, tenta beijá-la nos lábios. Pouco depois ela perde a memória e se vê em região desconhecida, sem mais saber quem era, e haviam passado vários dias. Ela ignora ser agora alvo de fofocas nos jornais: Warburton havia viajado e a história era que Dorothy havia fugido com ele.

Nas semanas seguintes ela vive de forma miserável. Acompanha um grupinho para ser colhedora de lúpulo numa região paupérrima, recebendo pouca alimentação ou dinheiro. O trabalho é estafante, nem dá para comprar roupas. Orwell deixa bem clara a existência de miséria e fome na Inglaterra.

Quando Dorothy recupera a memória escreve ao pai, mas tudo o que obtém, com a mediação de um primo, é uma colocação de professora numa escola horrível, sendo oprimida pela diretora, que exige que as crianças sejam tratadas de forma dura e que praticamente não recebem nenhuma instrução decente. E tudo isso com salário de fome.

A ironia em tudo isso é que, quando pode afinal voltar com a reputação restaurada até certo ponto e a mexeriqueira desmascarada em outro caso em que ela teve de responder processo de difamação, Dorothy simplesmente se conforma em continuar na mesma vida de servidão junto a um pai carrancista que em nada havia melhorado.

Como em “A flor da Inglaterra”, Orwell conta a história de uma pessoa que vive na infelicidade e se conforma com a infelicidade.

 

Rio de Janeiro, 20 de março de 2023.