Gilead - Marilynne Robinson

Uma obra que deixa o leitor em estado de graça...

Marilynne Robinson - Gilead, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005

Estamos na metade dos anos 1950 em Gilead, pequena cidade do estado de Iowa. O reverendo John Ames, personagem principal deste livro, passou quase sua vida toda ali. Ele está com cerca de 77 anos, tem um sério problema cardíaco e acredita estar próximo de seu fim.

É ao filho de apenas sete anos que Ames se dirige o tempo todo (ele se casou bastante tarde e sua esposa tem a metade de sua idade), como se estivesse escrevendo uma longa carta para ser lida apenas quando o menino ficar adulto. Ames nos dá a entender que essa é a única herança possível que pode deixar para o pequeno, ao mesmo tempo em que lhe vai passando ensinamentos fundamentais para uma vida correta e decente.

Tocando aqui e ali em questões filosóficas e teológicas, ele igualmente vai nos contando a história de sua família de religiosos – ele fala especialmente de seu avô, um abolicionista que participou da Guerra da Secessão, uma figura fascinante. Outra figura que chama muito a atenção é o afilhado do reverendo, o desajustado Jack Boughton. Ele participa, bem próximo do final do livro, de uma das cenas mais comoventes da obra.

A todo o momento o divino e o profano se cruzam nessas páginas permeadas de grande sensibilidade e poesia. Como neste trecho: "Muitas vezes amei a tranquilidade de um domingo comum. É como estar em um jardim recém-plantado após uma chuva quente. É possível sentir a vida silenciosa e invisível." Ou ainda este: “A memória pode fazer uma coisa parecer bem mais do que ela realmente foi." Não por acaso o livro de Marilynne Robinson foi vencedor do prêmio Pulitzer de 2005 e sobre ele The Washington Post escreveu que “(...) é tão belo, tão bem escrito, que o leitor se sentirá em estado de graça só em lê-lo.” Esse elogio não é exagerado, de modo algum.

Desde as primeiras páginas o livro lembra outro, com temática afim: A Morte Vem Buscar o Arcebispo, de Willa Cather, definitivamente uma de minhas leituras mais prazerosas em vários anos. Mas ainda outra obra vem à memória durante a leitura de Gilead: o igualmente belo e comovente Diário de Um Pároco de Aldeia, de Georges Bernanos, citado por Ames a certa altura.

Gilead lembra o livro de Bernanos não apenas pela suavidade e delicadeza em contar as coisas como o personagem nos conta, mas também pelas questões espirituais e materiais por ele abordadas. Tanto o livro de Cather quanto o de Bernanos – e provavelmente acontecerá a mesma coisa com este de Marilynne Robinson – permanecem na memória muito tempo após a leitura.

Em vez da tradicional divisão em capítulos, o livro é desenvolvido em parágrafos de tamanhos variados (geralmente curtos ou médios), contando histórias que vão e voltam no tempo. Ames começa contando um fato, depois o larga pelo caminho e a ele retorna mais tarde, de modo a manter sempre o interesse do leitor, já que nenhum acontecimento de grande monta, nenhum desastre excepcional, nenhuma aventura inesquecível dá suas caras por aqui. Mas a morte sim: e o que Ames pensa sobre o fim? Veja este belo trecho:

“Parece ridículo supor que os mortos sintam falta de algo. Se você for adulto quando ler isso – é o que pretendo com esta carta: que você só a leia quando já for adulto -, já terei partido há muito tempo. E terei aprendido quase tudo o que há para se aprender sobre o que é estar morto. Mas, provavelmente, guardarei para mim essas descobertas. Ao que parece, é assim que as coisas são.”

Mesmo com um personagem tão sábio e carismático à nossa frente por quase trezentas páginas, alguém acostumado com narrativas ligeiras ou frenéticas pode achar a vida de Ames sem graça, enfadonha, maçante: disso não resta dúvida, já que sua história se desenrola basicamente através do pensamento e da reflexão. Mas deixando de ler Gilead por conta disso, o leitor perde a oportunidade de conhecer a escrita particular dessa notável autora. Sobre a qual o Publishers Weekly escreveu:

“Muitos escritores tentam capturar os conceitos universais de força, luta, felicidade e perdão. Marilynne Robinson de fato os alcançou neste livro, destinado a ser um clássico.” E Gilead já é considerado pela crítica um moderno clássico da literatura americana. Digno de figurar ao lado do livro da compatriota Cather e do do francês Bernanos.