Sapiens - Yuval Noah Harari

Algumas considerações sobre a obra...

Yuval Noah Harari - Sapiens: Uma breve história da humanidade, Porto Alegre, L&PM, 2015

Sapiens é o resultado de uma intensa e extensa pesquisa levada a cabo pelo historiador israelense Yuval Noah Harari, como se pode comprovar pela alentada bibliografia relacionada no final do volume. Inicio meus comentários reproduzindo o trecho do diário inglês The Guardian que a L&PM imprimiu na capa da edição brasileira de 2015, que foi a que li: “Harari é brilhante [...]. Sapiens é realmente impressionante, de se ler num fôlego só. De fato questiona nossas ideias preconcebidas a respeito do universo.” E vamos lá.

Sim, impressionante o livro é mesmo porque pretendeu contar, ainda que de modo breve, como diz seu subtítulo, toda a história da humanidade, o que parece constituir uma tarefa hercúlea para alguém, já que apenas lê-lo demanda um bocado de tempo, esforço e atenção; lê-lo num fôlego só é impossível porque o volume tem muitas páginas e ainda que Harari escreva claramente, de vez em quando é preciso parar para refletir um pouco sobre suas observações, colocações e propostas; e finalmente sim, algumas ideias que temos sobre o universo têm de ser revistas mesmo, especialmente aquelas que se relacionam a uma suposta missão – por vezes associada à religião e à política – que o homem teria aqui na Terra, se é que ele tem alguma mesmo. Daí eu daria um salto para próximo do final do livro, onde Harari cita Nietzsche e também discorre sobre felicidade.

Mas antes disso queria registrar que desde o início a narrativa de Harari seduz o leitor, pois mesmo que cite um bocado de dados históricos, parece muito mais que você está lendo um bom romance sobre a espécie humana do que propriamente o livro de um respeitado e conhecido historiador israelense, autor de livros de grande sucesso mundo afora. Algo parecido que senti há quase três anos quando li um volume com propósitos quase semelhantes, Breve Historia do Mundo, do alemão E. H. Gombrich, mas que tinha ambições muito mais modestas do que o autor de Sapiens: ele escreveu esse livro voltado para o público jovem de seu país, citando fatos, datas, nomes etc. apenas quando estritamente necessários. Um bom exemplo que os livros didáticos de História deveriam copiar.

Se em quase todo romance longo há trechos em que o interesse do leitor pode cair um pouco, já que houve essa comparação, o mesmo ocorre em Sapiens. É quando Harari se volta, lá pela metade da obra, mais ou menos isso, para a história tradicional, tratando de fatos e episódios que já conhecemos, estudamos ou lemos sobre eles antes, período que vem depois do que se convencionou chamar de pré-história, história propriamente. Penso que a melhor parte do livro seja exatamente seu início – além de suas considerações finais, claro –, quando em poucas palavras ele consegue resumir exatamente o que seja a física, a química, a biologia e a história e depois anuncia as três revoluções que a humanidade viveu ao longo de milhares de anos: a cognitiva, a agrícola e a científica. Dessas, então, a cognitiva, por ser a menos documentada, me pareceu a mais interessante, ainda que sobre ela não se tenha tanta certeza do modo como se deu.

Quando já havia humanos sobre a Terra, mas ainda não havia história, quer dizer, registros documentais confiáveis, mas havia pinturas rupestres nas cavernas, ou seja, quando ainda estávamos nos tempos da pré-história, sobre todo esse período Harari é obrigado a criar hipóteses, suposições, estabelecer conexões etc., enfim usar sua imaginação para preencher enormes lacunas de conhecimento, coisas sobre as quais não há certezas cristalizadas: isso torna essa parte do volume, como eu já afirmei, extremamente interessante, algo meio parecido com, exagerando um tanto, ficção científica para trás, para o passado, quando esse gênero comumente especula com o futuro. Coisa que Harari também faz de vez em quando, como quando tenta descobrir para onde caminha a humanidade. É bom lembrar que ele fala em “ficções”, “construtos sociais”, “realidades imaginadas”, criações humanas, e destaca que “uma realidade imaginada não é uma mentira.” Certamente que não.

De volta à citação que Harari faz sobre Nietzsche, ela tem a ver com felicidade, assunto que é tratado no penúltimo capítulo da obra, num tópico apropriadamente intitulado O sentido da vida. Para o filósofo alemão não, a vida não tinha sentido algum, daí que dificilmente se podia ser feliz sabendo disso. Nascemos, vivemos, morremos e daí? Daí, escreve Harari: “Como colocou Nietzsche, se você tem um motivo para viver, é capaz de tolerar praticamente qualquer coisa. Uma vida cheia de sentido pode ser extremamente gratificante mesmo em meio a adversidades, ao passo que uma vida sem sentido é um suplício terrível independentemente de ser repleta de conforto.” Para Nietzsche a arte e a filosofia seriam os remédios da vida, coisas que poderiam dar sentido a uma existência.

O escritor espanhol Enrique Vila-Matas, que não é citado por Harari, mas que, como muita gente, também pensa que a vida não tem sentido algum, que nós é que precisamos dar um sentido a ela, resumiu o pensamento de Nietzsche numa boa frase, escolhendo a literatura como a arte que pode substituir o desespero de se viver uma vida inútil, filosoficamente desprovida de qualquer conforto maior: “A literatura consiste em dar à trama da vida uma lógica que ela não tem.” Apenas trocou sentido por lógica, mas disse a mesma coisa que Nietzsche pensou há bastante tempo. E indo um pouco mais longe, o que Harari fez em Sapiens foi justamente tentar dar sentido, tratar logicamente a vida humana na Terra desde o seu início através dessa breve história, que é, no fundo, literatura. No caso, uma narrativa sobre a evolução humana, biológica e cultural.

Penso que Sapiens dialoga ainda com algumas ideias de outro livro interessante (importante), mas não tão lido por aqui, que estranhei não ter sido citado por Harari, mas tudo bem. Trata-se de Cachorros de Palha: reflexões sobre humanos e outros animais, do pensador inglês John Gray. Ele afirma que a vida é uma casualidade, que a espécie humana, em sua essência, pouco difere das demais espécies vivas, dos demais animais. Mas o ser humano, crente que é o centro do universo (antropocentrismo), que é obra divina (ou até mesmo um super-homem), não aceita que sua existência seja inteiramente acidental, ou seja, que uma vez surgida, evoluiu pela seleção natural de mutações randômicas e tornou-se, ao fim, sapiens. Como queria Darwin.

E já que a vida não tem sentido mesmo, pois sabe que ela é resultado de um acidente evolutivo, Gray prossegue, o homem tem de “assumir seu destino” (olhaí Nietzsche outra vez), o que ele faz com a ajuda da ciência e tecnologia: informática, medicina, nanotecnologia etc. Buscando cada vez mais o ócio, o prazer, a felicidade e outros mimos, o ser humano acabou se transformando noutra coisa. Deixou de ser “sapiens” para se metamorfosear em “homo rapiens”, ou rapace, exterminador de animais e plantas, água e outros bens naturais preciosos para a vida. Em suma, Gray diz que os humanos se tornaram rapidamente os maiores predadores sobre a face da Terra, coisa que Harari igualmente admite.

Nunca satisfeito, o homem pretende se tornar um deus, diz Harari no último capítulo da obra (O fim do Homo sapiens), não quer prestar contas a ninguém pelos seus atos. Estamos mais irresponsáveis do que nunca, “(...) destruindo os outros animais e o ecossistema à nossa volta, visando a não muito mais do que nosso próprio conforto e divertimento, mas jamais encontrando satisfação.” E aí eu emendo Harari com Gray, que diz que pensar que o futuro da humanidade será melhor não passa de uma ilusão, já que ser feliz é muito mais importante do que ter, acumular bens: “A felicidade não vem daí, mas de aceitar a nossa natureza animal, que, ao contrário das crenças, é imutável.” Ou seja, temos de permanecer Homo sapiens, levarmos a vida “(...) da maneira mais bela e inteligente possível”, atitude com a qual certamente Harari concorda.

Ser sapiens e não rapiens. É isso que importa, então.