Achados e Perdidos 

“- Você criou um dos personagens mais importantes da literatura americana, depois o destruiu – disse Morrie. – Um homem capaz de fazer isso não merece viver.” 

Entre tantas passagens que pudessem ser memoradas para ruminar sobre “Achados e Perdidos” (2015), segundo livro da chamada “Trilogia Bill Hodges”, o trecho acima desponta como uma solene mostra do fulcro narrativo, reunindo características dissímeis se contrastado ao ótimo “Mr. Mercedes”, que inaugura a tríade assinada por Stephen King.  

Apesar de o seguimento manter as características de um thriller, esse segundo capítulo reclama por soberania. Além de conquistar liberdade para ostentar um novo ponto de partida, não hesita em dar vazão a novos contextos, conflitos, personagens e até uma história sendo contada dentro de outra. O autor teve esmero em engendrar um novo leque, bem sintonizado à trama precedente, afinal o enredo basilar permanece sendo desenrolado, inclusive havendo muita coisa ainda a ser exposta.  

A história dá seus primeiros passos com o leitor sendo apresentado a “O corredor”, uma famosa trilogia escrita por John Rothstein, mais precisamente um Best-seller que esbanjou potencial para abocanhar uma legião de fãs, rendendo um acentuado prestígio ao autor. Parte dessa condição acabou maculada quando, quase literalmente, seu criador jogou um verdadeiro balde de água fria nos fãs ao pôr um ponto final na saga também conhecida como “Jimmy Gold”. A partir daí, passou a viver exilado, como um ermitão, condição que contribuiu para o literato, durante a calada da noite, ter sua morada invadida por Morris Bellamy, um jovem impelido pelo acentuado pendor beletrista, sobretudo, no que tange as obras assinadas pelo icônico Rothstein.  

O fanático leitor de Rothstein, simplesmente, não se conformava com o desfecho atribuído ao personagem Jimmy Gold, por ele concebido como verdadeiro audaz. Diante de sua real ojeriza pelo desenlace narrativo, não titubeou diante da oportunidade de ceifar a vida de Rothstein para se apoderar de todos os manuscritos guardados. Para não ser descoberto, Morris enterra o material que anos depois, na base do acaso, é encontrado por um jovem. Como se torna possível presumir, King uma vez mais esmiúça um pouco da relação, tão complexa quanto obsessiva, retratada em “Misery”. Se há espaço para símiles, o enredo não esconjura ou elicia um conjunto de diferenciações, buscando alcançar sua originalidade.  

“Achados e Perdidos” é uma narrativa que não se exime de suscitar lucubração, reclamando pela constante reflexão da relação autor/leitor no âmbito da sociedade, discutindo a forma como as histórias, em um mundo que mais se assemelha a um verdadeiro hospício aberto, podem contrariar a perspectiva de seus autores, culminando com efeitos atrozes. Entrementes, a partir daí se abre espaço para uma importante indagação: e quanto a Bill Hodges e seus fiéis escudeiros Holly e Jerome? Esse é um aspecto deveras relevante, porque a atuação deles pode até ser satisfatória, mas passa ao largo de ser pujante.  

Na possibilidade de existir um anseio por uma participação mais efetiva dos ótimos protagonistas, o segundo capítulo da trilogia também ostenta sua dose de acerto, podendo ser considerado como um romance policial intrigante, com algumas passagens um tanto aterradora (no melhor sentido), e outras capazes de requerer o máximo de atenção. Além da presença de elementos que dialogam com o terceiro volume da saga, instigando, com o fim da história, o fiel leitor a não postergar muito a leitura de O “Último Turno” e preparar para a despedida, ao menos parcial, de uma saga intriguista e regiamente enigmática.

Rafinha Heleno
Enviado por Rafinha Heleno em 14/04/2023
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