Lincoln no limbo - George Saunders

O que aconteceu na noite de 25 de fevereiro de 1862 em Washington, D.C.?

George Saunders - Lincoln no limbo, SP, Companhia das Letras, 2018

Porque nunca havia lido antes nada nos moldes de Lincoln no Limbo não achei essa uma experiência literária lá muito fácil. Mas que, no final, revelou-se altamente compensadora. Mais de quatro anos atrás eu buscava informações na internet sobre este livro quando me deparei com outra obra de George Saunders, Dez de Dezembro (Companhia das Letras, 2014). E sobre ela então escrevi um comentário pouquíssimo entusiasmado depois de finalizar o volume com seus dez contos: dei apenas duas estrelas em cinco pela minha leitura, então um tanto frustrante. Desse modo, mesmo tendo lido muita coisa boa sobre o romance que narra a morte do menino William Wallace Lincoln (o Willie), onze anos, filho do presidente Abraham Lincoln (1809-1865), dei um bom tempo antes de iniciar sua leitura.

Mas com muitas críticas e resenhas positivas na cabeça, também com a correta sinopse que a Companhia das Letras apresentou o livro ao público brasileiro e sabendo que se tratava de ficção histórica, conhecendo um pouco os personagens e o que iria encontrar nas quase quatrocentas páginas do volume, não tinha como dar errado dessa vez. Resultou que a experiência com o texto de Saunders acabou sendo surpreendentemente boa, valeu muita a pena sua leitura. Algo assim como, guardadas as devidas proporções, mergulhar em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, narrativa além-túmulo escrita há muito tempo, em 1861 (um ano antes da morte de Willie Lincoln e 156 anos antes deste livro de Saunders), que causou estranhamento nos críticos e leitores daquele tempo, claro.

Se se pensar apenas nos dois personagens principais, Willie e seu pai, o presidente Lincoln, numa perspectiva histórica, o texto vai parecer que tem início, meio e fim, como nas narrativas tradicionais. Mas nessas páginas Lincoln vai estar mortificado pela perda trágica do filho e muito pouco preocupado com a guerra civil (1861-1865), que se desenvolvia então e que acabou ceifando milhares de vidas jovens também. Não apenas isso: a coisa vai bem longe quando a Willie (e ao pai) se juntam três personagens fictícios, tão defuntos quanto o garoto e que, digamos assim, estão encarregados do desenvolvimento de sua história, melhor, de expandi-la para outros domínios além daquela realidade passageira, o limbo que os situam entre a morte e o aguardado (por eles) renascimento.

Esses defuntos narradores são o marido quarentão Vollman, morto acidentalmente enquanto trabalhava, o jovem homossexual Bevins III, que se matou por amor, e um velho reverendo assustado, Everly Thomas. Mais à frente são incorporados outros personagens peculiares, todos muito falantes. No meio de citações históricas verificáveis, que permeiam todo o livro, também há muitas que são pura criação de Saunders. E aí a coisa pode ficar complicada para o leitor, ficar confusa, contraditória mesmo. Teria Willie morrido mesmo por descuido dos pais, se eles eram tão amorosos e cuidadosos? Lincoln era alto (1,93m, um gigante), mas era um homem pavorosamente feio como narram alguns ou, ao contrário, era muito bonito, como afirmam outros? Não há sequer concordância quanto à cor de seus olhos, descritos de diversas cores. Por sorte os capítulos são curtos (alguns são curtíssimos) então podemos nos recuperar um pouco da avalanche de sentimentos que Saunders provoca com seu texto diferenciado...

Temos aqui, grande parte do tempo, uma história criativa, inventiva, emocionante, bastante diferente daquelas a que fomos acostumados a ler nossa vida inteira, e isso certamente pesou bastante na escolha do livro para o Man Booker Prize de 2017. Mas Lincoln no Limbo traz também muitos trechos em que o leitor pode ficar meio (ou bastante, depende) perdido com as reviravoltas, com a polifonia, as muitas vozes narrativas presentes, conforme apontei antes. E aí é impossível não lembrar de outro livro premiado (mas com o Pulitzer), A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan, que também não trazia uma narrativa convencional, com seus diversos personagens, capítulos fora de ordem etc. Nisso os dois livros se parecem bastante...

Machado e as memórias de Brás Cubas são de 1861, o livro de Egan foi publicado aqui em 2012, o tempo passa rapidamente, melhor, como dizia Nietzsche, o tempo está aí o tempo todo, nós é que passamos por ele, os personagens também. Como aqueles dois livros, Lincoln no Limbo não deixa o leitor indiferente de modo algum, pode provocar reflexões sobre outros livros, sobre a passagem do tempo, sobretudo sobre viver e morrer, perder alguém que se ama muito, desesperadamente. Como devem se sentir pais que perdem filhos, como se sentiu Lincoln perdendo seu Willie. E isso tudo pode fazer você ficar com um nó na garganta e os olhos marejados algumas vezes...