O homem duplicado - José Saramago

José Saramago - O homem duplicado, SP, Companhia das Letras, 2002

Quem porfia mata caça: este é um ditado português, que utiliza um verbo pouco conjugado aqui no Brasil. Porfiar significa lutar, discutir, insistir, brigar por alguma coisa. Ou seja, nunca desistir de seu intento, sua caça, seu objetivo. Em outras palavras: aquele que luta, que persiste, atinge seu alvo. Quem Porfia Mata Caça é também o título de um filme fictício que o personagem central de José Saramago (1922-2010) vê numa noite (ou visiona, como dizem em Portugal) e que vai desencadear toda a história de O Homem Duplicado.

Tertuliano Máximo Afonso, 38 anos, divorciado, professor secundário de História, descobre no filme que vê, Quem Porfia Mata Caça, que um ator coadjuvante é, para usar uma expressão de Dias Gomes (quase sempre dita por Odorico Paraguaçu), cuspido e escarrado sua cara, um sósia perfeito, tem até mesmo a sua voz. A partir daí perde o sossego. Volta à locadora onde pegou a fita e começa a ver todos os filmes da companhia que produziu aquele vídeo para descobrir quem é o ator que é uma cópia de si mesmo.

Depois de cerca de cem páginas lidas temos então o nome do ator e agora Tertuliano quer encontrá-lo face a face. Mas as coisas não são assim tão simples, não acontecem de um dia para outro e o professor tem de persistir nessa tarefa para atingir seu objetivo. Além do que Tertuliano enfrenta problemas de relacionamento – com o diretor da escola, com a mãe e especialmente com a amante, Maria da Paz -, demonstra certa insegurança e parece mesmo sombrio ou deprimido por vezes. No mais é o Saramago de sempre, inimitável, com seus diálogos no meio do texto, separados apenas por vírgulas, longos parágrafos, uso de linguagem um tanto arcaica (ou folclórica ou esquisita) para leitores brasileiros etc.

Saramago conta tudo a seu modo, tudo muito devagar, ao contrário de Tertuliano que tem pressa em encontrar-se com seu sósia, esclarecer essa questão de identidade, saber quem o outro é de fato. O tempo é, digamos assim, rebobinado: voltamos vários anos atrás para os idos de fitas de vídeo e locadoras (as cidades tinham muitas em cada bairro), anos 1990, por aí. É como se fosse um filme com certo suspense mas rodado em câmera lenta e que expõe a seguinte questão: existindo duas pessoas exatamente iguais, que não são gêmeas, o que poderá acontecer quando elas se encontrarem frente a frente? Primeiro Tertuliano e o ator se falam por telefone, depois marcam um encontro para se conhecerem, numa casa fora da cidade, local pouco habitado em que dificilmente algum conhecido deles poderia estar na mesma hora. Ah sim, o ator atende pelo artístico nome de Daniel Santa-Clara e sua mulher chama-se Helena.

O encontro se dá num domingo à tarde, dia em que ambos estão livres, um das classes de História e o outro das gravações. Na casa conversam um pouco, bebem uma bebida, ficam nus e procuram identificar todos os sinais comuns entre eles. São perfeitamente iguais, gêmeos absolutos, têm nos mesmos lugares as mesmas cicatrizes. A única diferença é que o ator porta no dedo anular sua aliança de casado, Tertuliano não. Depois surge uma dúvida: já que em tudo são iguais, será que morreriam ambos no mesmo dia? Mais importante: teriam nascido na mesma data? Sim, exceto que um deles é poucos minutos mais velho do que o outro. Isso quer dizer que o que nasceu primeiro é, na verdade, o original, o outro é sua cópia. E sobre ele o original teria prioridades...

Durante muitas páginas acompanhamos o estranho relacionamento entre Tertuliano e Daniel (cujo nome verdadeiro é Antonio Claro), também com seus familiares, conhecidos, colegas de profissão e outros, seus projetos para o futuro etc. As coisas saem completamente dos trilhos perto do final, numa noite em que Daniel aparece de surpresa no apartamento do professor e lhe propõe – ou melhor, impõe – algo impensável, que o irrita profundamente e o faz pensar em vingança. Não é possível revelar mais do que isso, apenas afirmar que o final da história é muito bom. É José Saramago mergulhando numa ficção científica com gosto não de futuro, mas de passado...