Absalão, Absalão! - William Faulkner

Um clássico moderno, mas também uma história difícil, enviesada, fragmentária, que o próprio Faulkner confessou ter sido uma tortura escrever. Imagine ler, então...

William Faulkner - Absalão, Absalão!, SP, Companhia das Letras, 2019

Um substantivo que aprendi lendo Absalão, Absalão! (1936) foi oitavona, empregado muitas vezes para referir-se a uma personagem secundária da obra, e cujo significado transcrevo do Google: “se diz de uma mulher com 7/8 de sangue branco e 1/8 de sangue negro, descendente, portanto, de 7 bisavós de sangue branco e um bisavô de sangue negro. Em termos de aparência física, tanto pelos padrões brasileiros e mesmo pelos padrões norte-americanos, passaria por ser uma branca pura.” Mas não no sul segregacionista dos EUA e menos ainda no tempo em que se passa essa história.

Que se desenrola (ou se enrola demais, pelo modo como é narrada, plena de fragmentos delirantes do passado e outros recursos usados pelo autor) durante a Guerra de Secessão, ou Guerra Civil (1861-1865), e mesmo muitos anos depois do final da escravidão nos EUA. Tempos em que a cor da pele e ou a quantidade de sangue negro correndo nas veias de uma pessoa podiam determinar se ela viveria poucos ou muitos anos e o tipo de vida que poderia levar ali, entre os brancos, nem um pouco adeptos de qualquer forma de miscigenação, pelo contrário, combatida até a morte a fim de impedir o “escurecimento” do sangue dos sulistas.

O título da obra remete para o Antigo Testamento e os personagens encontrados na narrativa bíblica têm, guardadas certas proporções, seus correspondentes na ficção de Faulkner, sendo que o principal deles, o rei Davi aqui se torna o coronel Thomas Sutpen. Seu filho Absalão assume o nome de Henry Sutpen, e assim por diante com os demais personagens e as tramas dessa história bastante tortuosa, sobre a ascensão e queda de um homem (Sutpen), que o próprio Faulkner confessou a seu editor ter sido uma tortura escrever. Acrescento que lê-la também não foi nada fácil, por vezes foi mesmo exasperante.

Não apenas pelo modo como Faulkner a escreveu – são longos capítulos com longas frases e parágrafos imensos, idas e vindas no tempo, mudança de um ambiente para outro na sequência de uma frase apenas etc. –, também pelo enredo que ela encerra, as muitas desgraças que os narradores Quentin Compson e Rosa Coldfield nos contam sobre a família Sutpen que, em linhas gerais vem resumido nas páginas iniciais desse romance gótico:

“Parece que esse demônio — seu nome era Sutpen — (coronel Sutpen) — coronel Sutpen. Que veio do nada e sem aviso para esta terra com um bando de pretos estranhos e construiu uma fazenda — (abriu violentamente uma fazenda, diz a srta. Rosa Coldfield) — violentamente. E casou-se com a irmã dela, Ellen, e gerou um filho e uma filha que — (Sem carinho gerou, diz a srta. Rosa Coldfield) — sem carinho. Que deveriam ter sido as joias de seu orgulho e o abrigo e conforto de sua velhice, só que — (Só que eles o destruíram ou algo assim ou ele os destruiu ou algo assim. E morreram) — e morreram. Sem pesar, diz a srta. Rosa Coldfield — (Exceto dela) Sim, exceto dela. (E de Quentin Compson) Sim. E de Quentin Compson.”

Só que, claro, nada disso nos é contado linearmente porque Faulkner é um autor caracteristicamente cerebral, daqueles que dão trabalho para o leitor entender o que narram, então, em termos de dificuldade de leitura, penso que Absalão, Absalão! está mais para outro livro difícil dele, O Som e a Fúria (1929), e muito menos para Palmeiras Selvagens (1939) ou Luz em Agosto (1932), duas obras mais palatáveis que apreciei bastante tempos atrás. Apesar de tudo, tenho de reconhecer que Absalão, Absalão! não deixa de ser uma leitura fascinante.