Flores para Algernon - Daniel Keyes

O que mais importa na vida.

Charlie é um ser humano. Algernon é um rato.

Ambos são animais. E ambos são cobaias.

Charlie nasceu com tudo o que todo ser humano normal tem, um corpo que sente e uma cabeça que pensa.

Mas ele pensa de um modo diferente. O relógio interno dele é único, e mede o tempo de forma diferente.

Por algum motivo que eu desconheço, segurança talvez; e não sei se é culpa da sociedade ou da própria natureza, o ser humano é um bicho exigente com padrões. Tudo precisa caber na caixinha de medida estritamente calculada. Qualquer coisa ou pessoa que não caiba nessa caixa é, ou errado ou estranho. E consequentemente, excluído.

Para os pais de Charlie, que seguem esse padrão, ele deve ser escondido ou modificado.

Tentam de tudo e por fim ele vai parar numa instituição para retardados (palavra abolida, sendo agora usado o termo "deficiente intelectual"; porque afinal, é preciso encontrar uma caixa). Sob custódia de um amigo do pai de Charlie, que tem uma padaria, ele começa a trabalhar no empreendimento limpando banheiros, varrendo, entregando pacotes.

Charly é um menino meigo, gentil, questionador. Ingênuo e, sob pressão, tem dificuldade em controlar seus esfincters. Ele tem dificuldade em aprender as coisas que são ensinadas na escola.

De repente surge a oportunidade de Charlie passar por um procedimento de teste para aumento da inteligência. Em pouco tempo ele fica muito mais que inteligente, supera seus mestres. Mas em compensação se torna arrogante. Memórias escondidas ressurgem e ele sente que o Charlie de antes ainda está lá, dentro dele, coberto apenas com um pano, escondido no porão da própria mente. Ele vai finalmente conhecer o Charlie que foi, o que é agora e o que virá a ser.

Ele decide usar sua inteligência para melhorar o procedimento que fizeram nele e estudar todas as suas implicações, reações etc. Senti uma certa crítica ao método científico.

Ele tem um QI de 68.

Pra quê medem o quociente de inteligência, pra começo de conversa? Que inteligência é essa? O que é inteligência? Tirar sarro do outro só porque ele é diferente é ser inteligente? Saber de algo que nunca será usado na prática é ser inteligente? Que tipo de máquina ou receita de bolo é o ser humano a ponto de pensarem que todos somos iguais ou moldáveis?

É um livro que mexe com a noção que temos do comum. É como viver numa bolha e do nada ela estourar. Como viver uma vida perfeitinha e dar de cara com um orfanato, lar para deficientes ou asilo. Viver na abundância toda a vida e então conhecer a fome.

É possível saber de tudo? Todo mundo tem que saber de tudo? Ou caso contrário, deve sofrer bullying?

A gente percebe que o excepcional não é um lugar tão bom assim, dependendo do ponto de vista. Ser excepcionalmente inteligente é visto como bom, mas o contrário não. Seja como for estamos falando de um ser humano que pensa, que sente e raciocina, à sua maneira.

Nas necessidades básicas do ser humano, depois das fisiológicas e de segurança, vem os aspectos sociais. A última coisa que alguém pode querer na vida é realização pessoal e se a pessoa se contenta com tudo antes disso, e daí? Cada um tem seu papel na sociedade, cada um precisa desempenhar funções e como é impossível que todos sejamos iguais, que as condições o sejam!

A partir de agora é meu relato pessoal como mãe de um adolescente com deficiência intelectual de QI 73.

Assim como a Rose, mãe de Charlie, eu tentei de tudo. Quando na primeira infância eu comprava brinquedos pedagógicos mas ele só queria saber de colocar os carrinhos da Hotweels em fila, ou brincar com os bonecos do hulk e afins na lama pra depois esfregá-los um por um com uma escova de dentes e colocá-los pra secar, em fila. Lia pra ele bem devagar, mostrando as sílabas, e ele só queria saber das figuras. Eu tentei também encontrar um lugar pra ele na escola. Com laudos e mais laudos sendo jogada de um lugar pro outro e ouvindo "o sistema é falho, ele não tem direito a um professor apoio, só autistas têm." Fiz greve, deixando de mandá-lo pra escola por três meses e ensinando ele em casa. Por que? Ele ía pra escola assistir uma aula de quinta série sendo que ele não sabia nem o alfabeto. Uma vez me convenceram a dar Ritalina pra ele. E era tão triste ver ele chegar em casa depois da aula e chorar sem saber o motivo. Eu bati o pé e parei de dar. Ritalina serve pra focar, e no que ele poderia focar?! Equação?! Se não sabia nem quanto dava 2+2!? Minha família ainda me culpa, diz que se eu tivesse dado a Ritalina ele teria aprendido. Eu não importo, ele ficou bem mais feliz depois que parou. Da greve resultou que o conselho tutelar me chamou lá e ele teve que voltar pra escola. Só vai porque tem que ir, porque não sabe balhufas do que ensinam no (agora) nono ano. E tem mais, por ele ser "especial" ele não é reprovado. NUNCA! Na verdade essa questão de reprovação é geral porque quanto maior o índice de aprovação da escola mais recursos ela recebe.

As vezes ele conta algo sobre história ou geografia que ouviu na sala de aula. Ele gosta de curiosidades sobre arqueologia e animais. É um menino meigo, gentil, educado. Nunca mexeu num produto de limpeza ou num remédio, mesmo que tivesse acesso. Nunca levou um tapa! Sempre que fazia algo errado eu abaixava e explicava. Nunca deu uma birra por algo que queria e lhe foi negado.

Assim como a Rose, eu já pensei que fosse preguiça. Já gritei com ele e já cobrei.. Porque eu tava dentro da minha bolha. À qual fui condicionada.

Quando a gente não entende o que se passa com a pessoa fica fácil cair nessas caixas e em julgamentos errôneos. Quando, depois de muitas idas a psicólogos, psicopedagogas, psiquiatra, neurologista (com oito anos meu filho foi injetado com contraste pra fazer uma tomografia pra ver se o problema era neurológico - acreditem, não foi por escolha minha, a pressão foi tanta que eu não consegui enfrentar). Eu, como mãe, sofro com essa pressão, imagina ele?! Agora que entendo sinto, mas quando tava do outro lado eu nem ligava pro que ele sentia, tinha porque tinha que caber na caixa. Conscientizá-lo também é algo desafiador, ele sabe que tem dificuldade, algumas coisas que acabou de ouvir se perdem como nuvem desfeita, outras, aquelas que tem conexão sentimental, ele armazena desde a tenra idade. E ele mostra claramente que não quer aprender, assim como Charlie só queria mexer com a alavanca da gaiola de Algernon. Ele não quer se preocupar com coisas complexas. Eis uma das características de pessoas como ele e Charlie, a simplicidade e leveza com que encaram a vida.

E tá tudo bem. Ele tem o lugar dele no mundo e vai ocupá-lo sendo quem ele é. E é isso que reforço pra ele. Que seja si mesmo, independente do que dizem que ele deve ou não ser. É um menino saudável, forte e o mais importante, adaptável. Vai conseguir encontrar um emprego pra se sustentar e se não encontrar torço pra que não lhe falte nada e estarei sempre ao seu lado pro que der e vier.

Inteligência e educação sem doses de afeto humano não valem droga nenhuma.

Existem alguns núcleos pedagógicos do município que auxiliam com uma hora de aula semanal com profissionais como terapeuta ocupacional e pedagoga. Enquanto ele estudava em escola do município ele até chegou a ter uma professora que ficava o tempo todo com ele em aula. Mas quando foi pra escola estadual, já era! Ele é só mais um número, só mais um na fila da esperança por inclusão.