O QUE É SOCIALISMO, HOJE - PAUL SINGER

SINGER, Paul, O que é Socialismo, hoje - 7ª edição, Rio de Janeiro, Vozes.

O socialismo, no século XX, foi a grande promessa de um modo de produção em que houvesse igualdade social. Porém o socialismo real demonstrou através da União Soviética ser tão opressor quanto o capitalismo, no momento que assassinava todos os seus opositores políticos, sendo a maioria composta por integrantes do próprio partido. Mas será que a construção do verdadeiro sistema socialista é impossível? É essa questão que o economista marxista e doutor em Sociologia pela USP Paul Singer tenta explanar aos leitores em "O que é Socialismo, hoje".

No seu livro "O que é Socialismo, hoje", Paul Singer incentiva a discussão do socialismo na nossa época. O conceito de socialismo não pode ser o mesmo que o de há mais de quarenta anos atrás: à medida que o capitalismo muda, o conceito de o que é socialismo também vai se modificando de acordo com as demandas e exigências das classes sociais oprimidas.

Seguindo nessa linha, é que ele constrói a tese central do seu livro: o socialismo de nossa época significa “a igualdade no plano econômico e social e a democracia no plano político [de forma que] estejam implantadas em medida maior do que o estão presentemente e poderiam sê-lo mesmo no futuro nas sociedades em que o capitalismo está mais avançado” (SINGER, p. 23). Ou seja, socialismo hoje não representa apenas a igualdade econômico-social, mas também a participação ativa e decisiva de toda a população na construção deste socialismo.

Dessa forma “a abolição da propriedade privada dos meios de produção é (...) uma condição necessária à superação do capitalismo (...) mas não é suficiente” (SINGER, p. 19) à construção do socialismo. Se o Estado centralizar a economia, a política e a produção em suas mãos, como ocorreu na União Soviética e em outros regimes burocráticos, a superação da contradição de classes, exigência principal do socialismo, não ocorrerá já que haverá uma cadeia de burocratas, dentro do aparelho estatal, que decidirão entre si todos os problemas da sociedade em detrimento da população que eles dizem representar.

Porém, para não continuar havendo uma contradição de classes, mesmo com a abolição da propriedade privada, é preciso superar a dicotomia entre trabalho manual e trabalho intelectual que o capitalismo fomentou. A não democratização da educação e o processo de produção do capitalismo hodierno com certeza foram decisivos para a existência de trabalhadores manuais, que recebem ordens, e intelectuais, que dão ordens e subordinam aqueles. Com a Segunda Revolução Industrial, as inovações “foram deliberadamente orientadas no sentido de separar as funções intelectuais de planejamento e direção das funções de execução, de modo a permitir que as primeiras pudessem ser assumidas por assalariados especializados com o encargo específico de obter do trabalhador manual a máxima produtividade” (SINGER, p. 44).

Assim, esta contradição está enraizada nas sociedades capitalistas e a sua superação depende do Estado socialista. Deve haver, então, “a equalização completa da escolarização de todos os trabalhadores, através de um nivelamento que só pode ser por cima” (SINGER, p. 29). Somente desta forma é que todos os indivíduos de uma sociedade terão capacidade de decidir sobre questões técnicas da produção e da sociedade. Cabe ao Estado dar condições necessárias à realização da democracia, e não haver uma união de burocratas para se perpetuarem no poder e realizarem uma ditadura sobre as massas. Enquanto não há a superação entre trabalho intelectual e manual, as sociedades que aspiram ao socialismo devem tomar suas decisões com base em referendos. E quem alega que desta maneira a construção do socialismo torna-se impossível tem um conceito de socialismo “concebido por direções intelectualizadas do movimento operário e que, uma vez no poder, é imposto aos trabalhadores em nome de leis abstratas da História, [sendo] um verniz ideológico a encobrir a dominação e a exploração dos trabalhadores pelos que pretendem ‘representá-los’” (SINGER, p. 52). “Ou a tomada do poder resulta de um movimento irresistível da grande maioria da população, conscientemente mobilizada, ou ela em nada servirá à auto-emancipação dos trabalhadores” (SINGER, p. 53).

Outra contradição que deve ser superada com a instauração do socialismo é entre as forças produtivas e as relações capitalistas de produção. Pensou-se antes que as relações capitalistas de produção um dia iriam paralisar o desenvolvimento das forças produtivas e a tarefa do socialismo seria, então, desenvolver as forças produtivas. Porém, o capitalismo a todo momento cria novas necessidades, originando novos produtos, causando uma hipertrofia da produção e do consumo.

A contradição consiste basicamente no fato de que as relações de produção capitalistas tendem a introduzir uma degeneração qualitativa das forças produtivas, à medida em que problemas que afetam indivíduos e sociedade são escamoteados mediante formas sempre renovadas de consumo que requerem novas forças produtivas cada vez mais alienadas do que se poderia considerar como necessidades legítimas. (SINGER, p. 26)

Dessa forma, a tarefa do socialismo seria reorientar o crescimento das forças produtivas “sem uniformizar demais nem nivelar os padrões de consumo por baixo” (SINGER, p. 26). Assim, não haverá consumismo excessivo, pois isto se tornou uma necessidade capitalista para mascarar os anseios frustrados de uma população.

Outra questão tratada pelo autor é que o desenvolvimento das forças produtivas tem se dado de forma desigual e combinada nos diversos países:

Enquanto a industrialização elevou o nível de desenvolvimento das forças produtivas em determinados países, a mesma industrialização, como fenômeno mundial, limitou o desenvolvimento das forças produtivas nos demais. (SINGER, p. 31)

Isto foi resultado da chamada Divisão Internacional do Trabalho, em que uns exportam produtos primários e outros, produtos industrializados. Contudo, o imperialismo não é um empecilho à industrialização dos países produtores de produtos primários como pensam alguns teóricos. Países de passado colonial como o Brasil e o México reconheceram a industrialização, apesar de ainda não a atingir de forma plena. Porém, nestes e em outros países houve triunfos da burguesia na área político-econômica.

O que se verificou foi que o desenvolvimento capitalista das forças produtivas requer o estabelecimento de relações capitalistas de produção, que soe resultar um triunfo de uma revolução burguesa (...) Os países em que [este triunfo não se deu as] relações de produção pré-capitalistas continuam a predominar. (SINGER, pp. 33 – 34)

Este desenvolvimento desigual e combinado originou a divisão do mundo capitalista em países adiantados e atrasados. Esta divisão “suscitou também uma divisão do conceito de socialismo em duas ‘modalidades’: um socialismo ‘adiantado’, com ênfase em igualdade e participação, e um socialismo ‘atrasado’, com ênfase em redistribuição de renda e desenvolvimento das forças produtivas” (SINGER, p. 32). Como os países considerados adiantados já desenvolveram as forças produtivas, causando até uma hipertrofia da produção, e já asseguraram direitos básicos dos trabalhadores (sindicatos livres, direito de greve, legalidade dos partidos operários), o programa socialista dos trabalhadores desses países reivindicará uma reorientação das forças produtivas, igualdade econômica e política. Enquanto isso, nos países considerados atrasados, o programa socialista será quase o mesmo que o do século XIX: reivindicação de direitos básicos trabalhistas, direito à organização e participação política, e um crescimento das forças produtivas. Por isso, “a cada conquista histórica da classe trabalhadora no seio do capitalismo, este se transforma e na mesma medida se transformam as demandas de classe, ou seja, seus interesses históricos” (SINGER, p. 21).

Em muitos países onde não houve um triunfo de revolução burguesa, o poder foi conquistado por coligações proletário-camponesas inspiradas na ideologia socialista. Nesses países, os novos regimes revolucionários tiveram a tarefa de desenvolver as forças produtivas em menor prazo possível. Isso aconteceu na União Soviética e em outros países como China, Cuba, Iugoslávia. Porém, o desenvolvimento configurava-se em “reproduzir nos quadros de uma economia centralmente planejada uma estrutura industrial análoga à dos países mais adiantados, que naturalmente eram e ainda são capitalistas” (SINGER, p. 35). Porém, estas forças produtivas criadas pelo capitalismo e que o Estado burocrático procurou transplantar tinha por fim a geração de lucros em relação ao capital aplicado. “Isto significa que estas forças produtivas não são neutras em relação às relações de produção, mas são frutos de um tipo determinado de relações de produção, quais sejam as que caracterizam o capitalismo” (SINGER, p. 43). Dessa forma:

A implantação de um modo de produção que foi desenvolvido através de relações antagônicas e de exploração condiciona o estabelecimento de relações de produção que não podem deixar de ser, em alguma medida, antagônicas e de exploração. (SINGER, p. 45)

Ao passo que os regimes burocráticos foram desenvolvendo as forças produtivas, “realizaram ampla redistribuição de renda, eliminando os antigos grupos privilegiados e elevando o nível de ganhos e o padrão de vida da grande maioria de trabalhadores menos qualificados, assegurando-lhes o acesso aos serviços sociais básicos e o benefício da segurança no emprego, o que constituía, com certeza, uma parte importante dos seus anseios e demandas” (SINGER, p. 39). Porém, os Estados burocráticos não asseguraram direitos básicos como partidos e sindicatos livres e direito de greve aos trabalhadores, sendo um dos pontos de confronto entre a população e o Estado. Nesse sentido, os trabalhadores continuaram sem direito de voz sob o pretexto de uma contra-revolução burguesa ser apoiada pela maioria da população. No entanto, “ou o socialismo corresponde aos anseios da maioria dos trabalhadores ou é apenas uma contrafação, imposta por uma minoria iluminada em processo de se tornar classe dominante” (SINGER, p. 49). Sob o pretexto da contra-revolução burguesa, houve inúmeros ataques aos que interpretaram os verdadeiros anseios dos trabalhadores.

O autor ainda destaca o nível de organização dos trabalhadores de países onde as forças produtivas estão mais desenvolvidas.

A nova forma assumida pelas lutas de classe contrapõe, pois, os trabalhadores manuais e seus representantes diretos ao conjunto da burguesia e da burocracia, inclusive os dirigentes que, em princípio, os representam no plano sindical e, às vezes, no plano político partidário. (SINGER, pp. 63 – 64)

Esses trabalhadores estão em circunstâncias históricas diferentes das dos trabalhadores de países onde as forças produtivas não foram tão desenvolvidas. Suas formas de luta e seus discursos são apresentados com maior contundência e não reivindicam apenas reajuste salarial. Isto ocorre porque “tanto o nível salarial quanto o nível cultural dos trabalhadores são mais elevados, o que os leva a combinar demandas econômicas com demandas políticas no lugar de trabalho. São estas demandas políticas, que se somam a outras mais gerais, de feministas, estudantes, grupos raciais etc.” (SINGER, p. 66). Um exemplo disso é uma análise de um trabalhador húngaro sobre sua relação com os tecnocratas que lhe fixam as normas de produção:

Eles sequer precisam admitir o que todo mundo sabe, ou seja, que eles não podem contar com qualquer informação vinda de nós, que realmente operamos as máquinas. Ao contrário, toda sua ‘ciência’ objetiva superar nossa sabotagem instintiva, incessante. Talvez em alguns lugares esta ciência inimiga realmente tenha os meios de evitar a sabotagem e de averiguar do que nós somos capazes, aqui e agora, como trabalhadores assalariados, cumprindo uma vontade alheia. Mas ela não tem idéia do que faríamos ou poderíamos fazer em seu lugar, por nossa própria conta (...). O primeiro objetivo de uma ciência técnica sob o controle dos trabalhadores seria um aumento da produção que reduzisse a quantidade de trabalho necessária para realizá-la. Obviamente, isto só seria possível se o que acontecesse com os lucros também estivesse sob seu controle. (Miklós Harashti, A Workers State – Um operário num Estado operário, Penguin, Harmondsworth apud SINGER, p. 66 – 67)

Este relato demonstra que “condições análogas de trabalho e de vida, em países capitalistas ou de economia centralmente planejada, dão lugar a demandas e anseios fundamentalmente idênticos” (SINGER, p. 67).

Assim, as novas formas de luta pelo socialismo não devem configurarem-se basicamente como uma luta pela conquista do poder, mas pela transformação do poder. A abolição da propriedade privada não é o bastante, é preciso que as decisões sejam tomadas por toda a população, embora o controle inicial da produção esteja sob o corpo de administradores e técnicos. E não é apenas no âmbito do Estado e da produção que deve haver ampla democratização, porém também em todas as instituições sociais.

Não é só o poder do Estado que tem que ser transformado, mas todo poder exercido autoritariamente: do patrão na empresa, do professor na escola, do oficial no Exército, do padre na igreja, do dirigente no sindicato ou no partido e, por fim mas não por último, do pai na família. De todos estes, provavelmente a soberania do Estado e a autocracia patronal ou gerencial na empresa são as formas fundamentais de poder, cuja transformação condiciona as demais. (SINGER, pp. 71 – 72)

Portanto, o livro trata das três concepções de socialismo: como solução das demandas das classes trabalhadoras, que diferem de acordo com o desenvolvimento das forças produtivas de cada país; como superação das contradições entre forças produtivas e relações capitalistas de produção, em que se deve reorientar o desenvolvimento das forças produtivas de forma que não sirvam para o mascaramento de anseios e para a alienação social; e como sociedade sem classes, superando a contradição entre trabalho manual e trabalho intelectual. Este último quesito é importante para não haver relações de exploração social, que, para tanto, além de investimentos sociais, é preciso de uma mudança profunda no pensamento das pessoas, como já falou Engels:

Ao modo de pensar das classes letradas, compartilhado pelo Senhor Dühring, deve parecer monstruoso que um dia não deva haver mais carreteiros e arquitetos de profissão e que a pessoa que durante meia hora deu instruções como arquiteto também empurre a carreta por algum tempo, até que sua atividade se torne novamente necessária. (ENGELS, O Anti-Dühring apud SINGER, p. 08)

Para que as três concepções de socialismo, que são interligadas, sejam concretizadas, é imprescindível um processo intenso de democratização, sendo que toda a população deve ter o direito de se organizar, de opinar e decidir sobre o rumo da sociedade livremente. “O socialismo só será alcançado após uma extensa e vitoriosa prática de libertação, que abra caminho, ao mesmo tempo, ao desenvolvimento de novas forças produtivas e à socialização completa do trabalho intelectual” (SINGER, p. 72).