QUEIMANDO AS ÁGUAS ...

QUEIMANDO AS ÁGUAS I

Depois que ela lançou sua alma às águas

e me deixou sem alma, em plena terra,

no inusitado que a solidão encerra

e foi alimentar o mar das mágoas;

depois que eu pressenti todas as fráguas,

em que o malho, qual arma de guerra,

se esbateu sobre mim, na dor que ferra,

como cravos de gelo em facas d'águas;

depois que pretendia independência

e nada precisar, na ausência dela,

sendo autossuficiente em minha razão,

foi então que percebi quanta dolência

existe ainda em mim, perdida nela,

lançando ao mar as cinzas da emoção...

QUEIMANDO AS ÁGUAS II

Eu também tive sonhos mal cozidos,

mal cozinhados, frios, endurecidos,

mal ajambrados, mal pensados, ridos,

apenas deslumbrados e sofridos.

Sonhos mal feitos, ideais abatumados,

sonhos informes, sonhos empanados,

sonhos de azeite, de orégano marcados,

por autocomplacência desmanchados.

Esses sonhos que não quis sequer rever,

sonhos famintos, deixei apodrecer,

sonhos sedentos a que não dei beber.

Esses sonhos sem vestes, sonhos nus,

sonhos abortos, foscos e sem luz,

que não passaram, afinal, de sonhos crus.

QUEIMANDO AS ÁGUAS III

Meu cérebro eu lancei, engarrafado,

sobre as águas do mar, nesse pressago

expandir-me nas ondas, que naufrago,

no meu destino de vate acidulado...

Aedo sou e a vincha tenho atado

ao redor de meu cenho; a morte trago

dissolvida em meus versos sem afago,

igual que o coração agrilhoado...

Nunca quis ser poeta. Me obrigaram

os deuses da fortuna e da esperança;

mas por seus dons cobraram-me alto preço.

Com tal cântico a garganta me ocuparam,

revestido de azul, longa tardança

de quem se lança ao mar sem ter regresso.

QUEIMANDO AS ÁGUAS IV

Minha mente projetei, em rumo alado,

sobre as águas das areias do deserto.

No mar avermelhado, longe ou perto,

encontrei um fragmento calcinado.

Cada neurônio brotara, esfarrapado,

no abandono das mentes, semiaberto.

Qual presidiário de destino incerto,

na busca de um emprego desconfiado.

Foram palmeiras brancas, cujas folhas

nem tamarindo ou tâmara cobriram,

apenas letras, trazidas pelo vento,

recolhidas em odres, cujas rolhas

eram coágulos dos olhos que te viram,

no rápido esplendor de um só momento.

QUEIMANDO AS ÁGUAS V

Minha alma projetei, sem compaixão,

contra a areia da praia, ensandecida

pelos ventos que a levam de vencida

e a estupram, em salina comunhão...

Lancei às conchas toda essa ilusão

que me adornara o peito, em tal fingida

promessa sem calor, jamais cumprida,

esgotando sem dó meu coração...

Só os caranguejos da praia me escutaram:

até as gaivotas que queria mensageiras,

não me legaram a mínima atenção...

Ficou-me a alma suja, que a mancharam

as algas mortas e as vagas derradeiras,

em pó de sal e restos de paixão.

QUEIMANDO AS ÁGUAS VI

Os restos de neurônios sobre a areia

na margem de um oceano impenitente,

sofreriam a impressão subjacente

dos pés descalços de qualquer sereia

nascida no interior, não essa déia

que canta pelos mares, mal-volente,

porém de fêmea dessa humana gente,

que a rede lança em maliciosa teia.

Mas meus neurônios cairam no deserto

e o vento zombeteiro os projetou,

de suas cadeias desfazendo os elos.

E pouca gente passa, longe ou perto,

de tal modo que a impressão que resultou.

foi apenas a das patas dos camelos...

QUEIMANDO AS ÁGUAS VII

Quando minha alma recobriu as ondas,

desvairada de amor, sem lenitivo,

atoleimada no princípio ativo

do marulhar constante de suas rondas,

afundou-se lentamente, como sondas

lançadas ao abismo, sem motivo:

perdeu-se a alma pela qual eu vivo,

perdeu-se a jóia rara das golcondas...

Porém estava tão cheia de calor

que o mar, a seu redor, evaporou-se,

criando ao derredor fino nevoeiro.

Vastas nuvens cinzentas desse ardor,

até que o oceano inteiro desgastou-se,

sem que esta alma sumisse por inteiro.

QUEIMANDO AS ÁGUAS VIII

Amor é gume de escalpelo antigo,

sobre o fio do ciúme esmerilhado:

sequer diamante se faz mais afiado,

sequer titânio tem mais forte abrigo.

Do coração as farpas, no jazigo

se depositam, em pó amortalhado:

enche os pulmões o mesmo ardor gelado,

quando percebe amor como inimigo.

Eu me torno fumaça em absorção

dos fragmentos frígidos do sonho,

nas mãos reviro ideais outrora belos.

E ainda percebo em geada a encarnação

de luz em germe a refletir, bisonho,

o gume incerto de antigos escalpelos.

QUEIMANDO AS ÁGUAS IX

Amor é um laser: agudo a carne corta

num talho fino que não deixa borda;

penetra fundo quando não concorda,

em corte leve de epiderme morta.

Com tal laser, de teu rosto a parte torta

eu cortarei e, então, nova reborda,

para te remoçar assim transborda,

que em tal cosmética ilusão recorta.

São fios de ouro que disfarçam rugas:

meu escalpelo corta bem de leve

e retira de teu rosto o teu passado.

Do mesmo modo que minha vida sugas,

com bisturi no olhar, que apenas deve

cortar de leve o coração pesado...

QUEIMANDO AS ÁGUAS X

Neste amor feito estrela em estilhaços,

eu queimei minha amargura sobre o oceano:

calcinei os pergaminhos de meu plano

de conquistar um dia os teus abraços.

Até podia reunir os calhamaços

de minha antiga história, de ano em ano:

cantar de amores do passado arcano,

rever das belas os perdidos traços...

Mas soa bem melhor quando os poemas

um não-correspondido amor assim referem,

pois cada um já sofreu desilusões...

E, deste modo, identifica as gemas

com os próprios desdouros que ainda ferem

e mais se identifica em minhas canções...

QUEIMANDO AS ÁGUAS XI

Também queimei nas águas todo o bem

que desfrutei na vida, águas lustrais,

benditas essas águas, minerais,

são caldas para o corpo e a alma também.

De nada adianta recordar, porém,

as mortes do prazer são naturais,

todos mais belos gestos consensuais

são tão somente memórias que se tem.

E apenas em momentos de loucura

realmente do passado seus detalhes

se recordam, em certeza que seduz.

Mas enquanto a razão se nos perdura,

só lembramos os contornos de seus talhes,

como uma selva de torrões de luz...

QUEIMANDO AS ÁGUAS XII

Também queimaste a vida e o teu futuro

se reveste de plena virgindade,

cada dia uma donzela em puberdade:

a ti cabe seduzi-la, em canto puro.

Ou podes lhe outorgar fardo mais duro,

tomando à força tal possibilidade,

sem entregar-te com sinceridade;

ou projetar-te de cabeça a um muro,

coroado de incertezas... Teu destino

irás queimar por ti ou alcandorar:

é um candelabro de pristinas velas.

Acende-as uma a uma e toca o sino,

que nova vida possas convocar,

qual uma espada brandida entre as estrelas.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/08/2009
Código do texto: T1762819
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