LUZ DE GEADA 1-15

LUZ DE GEADA I

Orvalhado de ti, sou incompleto,

disforme minha visão nessa pureza,

eu não pertenço ao mundo com clareza,

se dessa chuva me afasto um só minuto.

Coagulado de ti, sou resoluto,

abranjo o mundo, num instante de beleza,

em tua presença alcanço ideal certeza,

não mais existe qualquer fanal secreto.

Mas não há exaltação, somente o arguto

reduplicar de ti, na aceitação

de cada laivo teu, cada faceta,

pois quanto mais ingênuo, mais astuto

eu me transformo no sereno da ilusão

de que algum dia te entregarás completa.

LUZ DE GEADA II

Depende do que sinto. Dia a dia,

as minhas emoções são diferentes,

não sou estático qual as outras gentes,

mas um caleidoscópio é que me guia.

Não depende do que sinto. A nostalgia

vem lá de dentro, secreções plangentes

se manifestam sempre, contundentes,

tristes, se rio; alegres, se sofria...

É desse modo que não sou responsável

pelas frases que vêm. Brotam sozinhas

e nada mais eu faço que escrever.

Não sou poeta, apenas condestável ,

comandando estas hostes comezinhas

e as transformando no sonho de quem ler.

LUZ DE GEADA III

O sangue são meus anjos e combatem

contra as forças do mal que me assediam;

diariamente, bactérias endemoniam

e é com esforço que então eles as matem.

As febres são mil flechas que as abatem,

mas há vírus e fungos, que desfiam

com eficiência as fibras que avaliam,

quando as plaquetas nova rede engatem.

Qual um aviso para o corpo inteiro,

meus neurônios gentis, luz de minhalma,

demonstram como existo, em ilusão

ou imagem mais real. Num derradeiro

esforço terrenal, morrem com calma.

enquanto eu vivo em nova vibração.

LUZ DE GEADA IV

Minha vida é tão só um faz-de-conta.

Faço de conta que vivo, mas nem creio

que eu sequer exista. Até receio

descartar-me e perder a pouca monta

que dou ao fato de pensar. Somente aponta

à certeza da existência de algum meio

que me leve a pensar, num devaneio,

mas não que exista, que a vida desaponta.

Se eu fosse bem real, mui certamente

viveria de outro modo e habitaria

em um mundo que pudesse governar.

Mas não sou mais que cálculo da mente,

que qualquer intoxicação destruiria,

mesmo que o corpo seguisse a caminhar.

LUZ DE GEADA V

Eu só busco a outorga do porvir:

o outrora para mim está perdido.

desejo o tempo antes de ter nascido,

porquanto o meu presente é um só fluir.

Eu vivo na esperança que há de vir

e esqueço o passado por vencido:

quer bom, quer mau, está desvanecido,

como a neblina deixou de me cobrir.

Mas o passado eu trago em mim seguro,

guardado em fios das redes minhas neurais

e não posso jamais dele me apartar;

prefiro então enfrentar novo futuro,

e desse modo, cravo os olhos nos fanais

que a mente me iluminam, sem perdoar.

LUZ DE GEADA VI

Ninguém deseja a morte: se afirmamos

desejar agora tê-la, o coração

não é sincero em tal afirmação,

pretende apenas afastar seus desenganos

ou sua aflição: mas o que deprecamos

não é a vida, porém a situação

em que nos encontramos, a ilação

de nunca ter aquilo que queiramos.

A vida é bela, por pior que seja,

mas ao vivermos na monotonia,

opaca a estrela que nos reluzia,

glabro é o futuro que se nos enseja;

mais glabra ainda é a morte que nos vem,

sem pelos sobre a carne, que nem tem!...

LUZ DE GEADA VII

Eu me vesti dessas manhãs de outono,

que passam tão velozes... Variegadas

em cores e calores... Incineradas

de sol... Ou manhãs gélidas, sem dono.

Também me revesti das madrugadas,

durante anos... Porém, nesse verão,

tive dias de diversa encenação,

em que vivi manhãs despedaçadas.

E revesti-me ainda em fios de geada,

brotando cristalinos sob a raiva

de um céu de azul furioso e sem carinho,

transformando essa luz em gume e espada,

por combater as pedras de saraiva

que o céu quis despejar em meu caminho.

LUZ DE GEADA VIII

Meus braços estendi e o azul puxei

que revestia o céu... Só lá na orla

o azul permaneceu, salvo uma borla

que outra, as quais na abóbada deixei,

enganchadas no Sol... Mas eu roubei,

porque puxei o azul qual fora um pano:

com ele envolverei meu desengano,

que minhas tristezas em rosa já embrulhei.

Ficou cinzento o céu sobre as cabeças,

nem negro, nem azul, nem branco puro:

o céu desfaleceu, fez-se em desmaio.

Pois nesse fim de abril, chegando maio,

a culpa é minha pelo céu escuro:

roubei-te a luz, para que não me esqueças.

LUZ DE GEADA IX

Depois... vesti-me dessas manhãs de inverno,

quebradiças de azul, que a aurora apenas

trespassa o seu pingente a duas penas,

manhãs tão finas quais folhas de caderno...

Manhãs que entram por detrás do esterno

e se encolhem, como murchas açucenas,

manhãs mal ensaiadas sobre as cenas

do palco do improviso, em circo eterno...

Essas manhãs, de geada e de saraiva,

grades de luz, de sereno entretecidas,

flores de vento que dançam em minha pele,

manhãs de cerração, que a névoa, em raiva,

faz bailar contra minha carne, entontecidas

de uma luxúria tão vesga que repele...

LUZ DE GEADA X

O vento que percorre, língua e dedos,

cada centímetro de minha pele exposta,

como grama a galgar por uma encosta,

na minha carne enraíza seus segredos...

Essas brisas sem rocio, brisas de medos,

que se engendram pela nuca que as arrosta,

correm da espinha, que divide as costas

em dois triângulos de carne, dois penedos.

Cristais de gelo à sombra dessas grades,

tomba o sereno nos castelos nobres,

dedos de neve, azagaia dos cativos,

nas omoplatas, que serviram como enxadas

nesses tempos mais antigos e mais pobres

e nas clavículas, punhais dos primitivos.

LUZ DE GEADA XI

Mas meu orvalho és tu, és primavera,

quando é macia toda a condensação

e o granizo e a saraiva, de roldão,

se fazem chuva morna na tua espera.

O meu rocio és tu, macia esfera,

que me percorre as costas, emoção

que se condensa ao ventre, exaltação

em que me assanho, na ilusão que gera

pequenos seres de orvalho, mil duendes,

brotados do suor de meus desejos,

nascidos de minha mente, em contração,

nascidos do sabor com que me atendes,

no mendigar altivo de teus beijos,

em véu de geada de pura cerração!...

LUZ DE GEADA XII

Todo o suor que escorre no verão,

das costas e do peito, pelas gretas

da terra e dos assoalhos, como setas,

se acumula para a nova geração.

E quando chega o inverno e a brotação

se esconde nas raízes mais secretas,

é quando surgem as frutas mais diletas,

brumas tardias da antiga sudação.

E assim se forma, a meu redor, fumaça,

uma couraça de vento, lança e espada,

que me resguarda contra todo o frio...

Nessa progênie de mim, que assim me abraça

e torna o turbilhão em luz de geada,

que me consola do derradeiro cio...

LUZ DE GEADA XIII

Estranho amor assim, amor de geada,

que no verão se torna amor de orvalho.

Dos pingentes de gelo tomo o malho,

para quebrar as correntes, fera alada,

que se alça entre as brumas, luz ousada,

a cintilar, brotando em cada galho,

em mil cristais de neve, esse cascalho

que conforma o diadema de uma fada...

Estranho amor, que assim me cobre a testa,

como auréola azul e acinzentada,

não feita de ouro e nem sequer dourada,

como ostentam falsos anjos para a festa,

que eu sou, durante o frio, filho da geada

e, na saraiva, celebro a antiga giesta...

LUZ DE GEADA XIV

Eu sou condensação em cada giesta,

sou o sereno que cai na madrugada,

sou a garoa a rebrilhar na espada,

desembainhada, em uma finta lesta,

para cortar as brumas... Vejo nesta

a manifestação da mente alada:

minha carne material se esfaz em nada,

enquanto luz de halo a testa infesta!...

Eu sou neblina e sou a cerração,

nos mil diamantes brancos do granizo,

corto meus próprios membros com essa adaga.

Fantasma branco da desilusão,

a larva amarga do incansável riso

deste amor condensado que te afaga...

LUZ DE GEADA XV

E quando saio à rua, em pleno estio,

sou o suor a refrescar teu rosto;

e quando bebes água, a torno em mosto

e te aqueço nos meus braços em dias de frio.

Não sou judeu, nem cristão e nem gentio;

eu sou o gênio em luminária posto;

eu sou a mão que esfrega o teu desgosto

e que à tua alma restaura o velho brio.

Nos dias de calor, nos lábios pingo

um beijo de frescor, gotas de chuva,

a névoa e a bruma de cada gestação,

que a luz da geada eu sou... E assim me vingo

do sopro do tornado, em triste luva,

quando minha vida evaporou-me o coração.

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com

William Lagos
Enviado por William Lagos em 14/02/2011
Código do texto: T2791283
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