EVANESCÊNCIA I & MAIS

EVANESCÊNCIA

Bem gostaria ter alguém que me ajudasse,

que estivesse a meu lado, sem reserva,

em lealdade que tanto mais conserva

um coração que em tudo me apoiasse,

e que meus livros até classificasse...

Não que eu almeje a posse de uma serva:

submissão total até me enerva,

mas uma sócia com quem me aconselhasse.

Pensei um dia ter e até provei

esse amor de alvaiade, amor de rúmel,

mas fui forçado a lhe assistir o esfume,

por tanto amor que, alfim, não conservei,

pois cada luz que enxerguei ao fim do túnel

tremeluzir se demonstrou de vagalume...

CORTE IMPURA VII

Pouco a pouco eu empurro tais memórias:

construo novas celas, bem fechadas;

as mais candentes deixo emparedadas

e esqueço o mais possível tais histórias...

são meus fracassos e as mais vazias glórias:

de uma em uma, desertam-me as fachadas,

as vastas salas quedam-se empoeiradas,

ninguém mais dança no meio das escórias...

Só perambulam as impressões sensórias,

à vista das ogivas descarnadas:

de certo modo, inteiro me esvaziei;

ao descartar as sensações inglórias,

eu fui buscar lembranças encantadas

dos dias felizes e pouco ou nada achei.

CORTE IMPURA VIII

Eu quis povoar de novo meus salões

com alegrias, prazer, felicidades,

com momentos de ternura, mil bondades,

com fibras luminosas de ilusões...

Eu lhes dei uniformes de paixões,

dei-lhes jóias de amores e saudades,

fiz orquestras e soldados, fiz abades,

criei o brilho de mil conversações...

Mas descobri, em pleno desalento,

que os novos cortesãos só tinham vida,

enquanto andava pelo meio deles...

Quando eu partia e deixava o aposento,

se desfaziam em pó, luz encardida,

que só minha vista projetava neles...

CORTE IMPURA IX

DEPOIS, EU PERCORRIA AS ALMENARAS,

SOB OS VENTOS MAIS GÉLIDOS; CORTANTES

AS LUFADAS QUE EMBATIAM, INCESSANTES

E ME AÇOITAVAM COMO OUTRAS TANTAS VARAS.

AO INVÉS DE SENTINELAS, TINHA ESCARAS;

NA TORRE DE ATALAIA, TRISTES GUANTES

JOGADOS PELO CHÃO, IGUAL QUE DANTES

BRILHAVAM OS BROQUÉIS EM CORES RARAS...

AO REDOR DO CASTELO, UMA FLORESTA

SE INSTALARA EM GALHOS LUXURIANTES,

NEM MAIS CAMINHO HAVIA, QUE A CIDADES

ME TRANSPORTARA, EM OCASIÕES DE FESTA:

MEUS SERVOS E DONZELAS DESLUMBRANTES

NADA MAIS QUE FRAGMENTOS DE SAUDADES.

CORTE IMPURA X

MEUS CALABOUÇOS NÃO TINHAM CARCEREIRO:

ATÉ O CARRASCO ESTAVA AGRILHOADO;

JÁ NÃO RESTAVAM LEMBRANÇAS A MEU LADO,

NÃO ME SOBRAVA SEQUER UM COMPANHEIRO...

E A CONCLUSÃO IMPÔS-SE, BEM LIGEIRO:

AS MEMÓRIAS QUE EU TRAZIA DO PASSADO

ERAM LEMBRANÇAS TRISTES DO MEU FADO;

FORA BEM RARO O INSTANTE ALVISSAREIRO...

OS CALABOUÇOS MEUS, SUPERLOTADOS,

TINHAM O MELHOR DE MIM E, SUFOCADOS,

ESTAVAM OS MEUS MEDOS E ESPERANÇAS...

SOMENTE ALCANÇARIA OUTRO DESTINO,

SE RECORDASSE CADA DESATINO

DAQUELA REDE CRUEL DE MIL LEMBRANÇAS.

CORTE IMPURA XI

Assim, fui libertando, lentamente,

das ruins recordações as menos más;

pouca alegria tal lembrança traz,

porém ninguém me disse, realmente,

que ser feliz fosse direito ingente:

é tão só o contentamento que perfaz

a busca pelo bem que nos refaz

e a pouco e pouco nos constrói a mente.

Destarte, repovoei com minhas tristezas

os salões e corredores deslustrados:

ouço o clamor de passos e de abraços.

Porém, as minhas piores incertezas

permanecem nas masmorras; encerrados,

em celas frias, todos meus fracassos.

CORTE IMPURA XII

São estes os meus servos permanentes:

se não compõem poemas, passam fome;

na minha prisão, só quem trabalha come,

mesmo que criem temas indolentes...

São estes os meus vermes descontentes:

sem mim, percebem que sua vida some;

cada qual só sobrevive, enquanto tome

um fragmento de minhalma; dependentes

são de meu sangue os velhos parasitas,

que poderiam levar-me até a loucura,

porém que reduzi à escravidão:

pois redigem para mim as longas fitas

de sonhos e poemas de ternura

que inda me fazem bater o coração...

CODICILO

Amor é apenas fruto passageiro

de um momento irreal de malefício...

Somente finge ser um benefício

essa sereia, de canto alvissareiro...

Apenas por instante condoreiro

nos entregamos a tão antigo vício...

Mas logo passa, sem deixar resquício

e amor se vai, em busca de um terceiro...

Fica apenas o ressaibo da lembrança,

um perpassar de beijos, de soslaio...

A voz oculta em nosso labirinto,

o perfume fugaz dessa esquivança,

no cheiro das manhãs do mês de maio,

quando esse amor que perdi ainda pressinto.

SIMULACROS VI

Lançado contra ti, me reproduzo

em mil cópias de mim, as quais despertam

em outros corações sonhos que alertam

desejos de um fugaz amor escuso.

De certo modo, assim eu me introduzo

em outros pensamentos, que me abertam

acesso aos sentimentos em que invertam

a minha paixão qual fio do próprio fuso.

Já me ocorreu assim que até pensassem

serem versos de amor que dirigia

por minha fome de lhes possuir o seio.

Eram versos de amor, mas que se alçassem

para outro coração, que nem sabia

até que ponto alcançava o meu anseio.

SIMULACROS VII

As máscaras de cera que mostramos

àqueles que nos veem, têm geralmente

a mesma construção intransigente

das máscaras mortuárias; copiamos

conjuntos de feições e as empregamos

perante o mundo, numa tal tangente;

algo trazem de nós, mas é imprudente

pensar que representam quem amamos.

Pois todas essas máscaras de mel

roubado das abelhas, contrastante

com a fluidez real dos sentimentos,

nos ajudam a ocultar o nosso fel,

que só aflora no perigoso instante

em que enfrentamos os próprios pensamentos.

SIMULACROS VIII

A máscara mostrada pelo espelho,

simulacro que a nós mesmos revelamos,

não é o nosso rosto, que mostramos

nem sequer a nós mesmos; sonho velho

que perpetramos sempre, talho e relho

a nos pôr no caminho que trilhamos,

por mais que todos nós, seres humanos,

preferíssemos seguir outro conselho.

Enganamos a nós mesmos, diariamente,

na ânsia vã de aos outros enganar,

na busca triste da melhor imagem...

Para que a lida da impressão frequente,

a nós mesmos nos faça acreditar

que somos a ilusão dessa miragem...

William Lagos
Enviado por William Lagos em 19/05/2011
Código do texto: T2979570
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