BAIONETAS / ESCLERA / CANDOR / SÃO BARTOLOMEU

BAIONETA I (24 ago 79)

O amor que nós sentimos, sem freio e descorreito,

Não importa qual barreira, não importa qual direito

Alheias vidas tenham por sobre a nossa vida,

Amor perpétuo e cheio, sublime de imperfeito,

Que expande-se tão mais se veja desejado

E encolhe-se tão menos se veja de almejado,

Mas, vendo-se querido, a tudo de vencida

Arroja de altivez e a tudo põe de lado...

Amor feito artefato, de nosso amor fagulha,

Amor de lavrador, perene e transitório,

Que, a cada brotação, de novo amor se entulha;

Amor feito artifício, de nosso amor triagem,

Amor de semeador, amor irredentório,

Que quanto mais se alarga, mais se enche de coragem...

BAIONETA II (28 mai 2010)

O amor assim sentido é feito de lembrança:

não dessa que sentimos dos tempos de criança,

porém dessa memória que escorre pelo ar,

entrando pelos olhos, em sonho de bonança.

O amor assim nutrido, dos ventos é bebido:

amor tão abrangente quanto já vem perdido,

amor que já se sabe não poderá durar,

porque chora das nuvens, em canto malferido.

Não é o nosso amor, porém o amor do amor,

não é nosso desejo, mas desejo do desejo,

são fantasmas de amor pairando sobre o solo.

Não é nosso vigor, mas ânsia do vigor,

não é o nosso beijo, mas anseio desse beijo,

que do alto escorreu e sentou-se em nosso colo.

BAIONETA III

Por isso, tal amor nos entra tão profundo,

tal como a baioneta que um soldado iracundo

arroja sobre nós, em ato de loucura,

aos som dos clarins mil que correm pelo mundo.

Esse amor nos assalta, em busca de carinho,

parece tão carente o sonho pequeninho

que se assenta em teu colo é pede tua ternura,

com olhar suplicante e hálito de vinho...

Mas esse amor, amiga, não é uma criança:

embora traga fraldas e chupe no teu seio,

já foi amor adulto e perdeu-se por aí...

Fantasma foi de amor, já seco de esperança,

que assim te hipnotiza, buscando qualquer meio

de arraigar-se em teu ventre, para viver de ti.

ESCLERA I (24 AGO 79)

Tu nunca saberás a que ponto é verdade

E a que ponto meus versos são só de ficção,

A que ponto se mescla o pendor da emoção

Com os fatos vividos, sonora em vaidade.

A que ponto os eventos narrados somente

Surgiram brilhantes da tinta e da pena,

A que ponto sofridos no centro da cena,

A que ponto criados no fundo da mente.

Talvez eu não conte, de fato, o que houve,

Talvez que a verdade escutada se ouve,

Na fábula muda, em sabor mais sincera.

E quem sabe se o sonho, de ideal tão frequente

Não é mais real, nos prazeres que sente,

E esta vida tediosa um luzir de quimera?

ESCLERA II (29 MAI 2010)

Muitas vezes ouvi, no passado, esta frase:

"Que o homem, no fundo, é tão só pretensão".

Assim, quem escuta qualquer narração

uma parte desconta no que a história se embase.

Já se espera, afinal. Se deseja, ate quase,

que os outros nos tomem por exageração,

pois existem aqueles que em toda ocasião

já aumentam um pouco, que o resto não vaze.

Porém eu não sou tal. Nunca fui fanfarrão

e assim nada inventei para teu benefício,

mas nem tudo o que conto, fui eu, me compreendes?

Pois há vozes opostas no meu coração

e muito que narro de feroz malefício

não merece essa pena, que às vezes, me estendes.

ESCLERA III

Tampouco o que conto se chama mentira:

alguém certamente o sentiu e o sofreu;

talvez o momento tenha sido mais teu

do que meu foi jamais esse instante, que gira

por entre meus dedos e em tinta se vira,

pois um tal sentimento por certo ocorreu,

talvez o conheças bem mais do que eu

e ao som da memória, tua mente o confira.

Mas enquanto o descrevo, por certo ele é meu:

por entre meus dedos se mostra desperto,

não importa se houve, se fez verdadeiro.

E há valor semelhante para quem isto leu:

gravou-se bem fundo e teu peito está aberto,

tal qual se o tivesses sentido primeiro...

CANDOR (31 AGO 79)

Tantos sonetos fiz no mês de junho,

Tantos casos contei, tantas histórias,

Tanta derrota feita de vitórias,

Tanta vitória somente de meu punho!

Descrita em versos ou então imaginada...

E ao ver estes poemas, por despeito,

Disseste não gostar, viste defeito

Nesse cantar da carne em madrugada.

Tu podes desdenhar, nessa aspereza,

As frases tontas, saídas de meu punho,

Julgando ser mentiras que entrevias...

Mulher, tu não sabes de certeza!

Talvez eu tenha te traído em junho,

Por não saber que em julho voltarias!

CANDOR II (1º. JUN 2010)

Sabe-se lá o que amor me faz,

enquanto marcha em seu andar ausente;

quem acarinha, quem beija com fremente

desejo inquieto de um balão de gás!

Sabe-se lá o que amor me traz,

quando retorna, no seu peito crente

de me encontrar no mesmo amor fervente,

que lhe jurara em despedidas más!

O fato é que me encontra, ao retornar,

quaisquer que tenham sido as incursões

de sua alma irrequieta por alhures...

Enquanto eu fico, dolente em meu sonhar,

mastigando a agridoçura de ilusões

com que passeei, irrequieto, por nenhures!

CANDOR III

Nestes sonetos de canto antecipado

ou de elegia, talvez, por meu futuro,

só do passado posso andar seguro,

sabendo quais traições que tenha amado.

Não sei quais foram essas de teu fado,

mas se te conto, meu trair é puro;

e, se ao redor de ti, ergues um muro,

por mais sejas fiel, vives pecado.

Pois se me escondes o que não aconteceu,

para criar em minha mente agitação,

almejas meu ciúme ter alçado...

E, se me escondes o que te sucedeu,

É porque esperas atiçar meu coração

E me perdoar por te ausentares de meu lado!

SÃO BARTOLOMEU (24 AGO 79)

Nascido de mulher, igual como tu és,

Eu tenho teus suores, teus medos, teus receios,

Sou vesgo, como tu: zumbaias, devaneios

Compõem-me a liturgia das mais perdidas fés.

Nascido eu sou do esperma, nascida és tu também

E nosso ovulejar repete, em nossa vida,

Falópico trajeto, na trompa adolescida,

Ao útero saltar de nosso amor que vem

Tingir-se de placenta, em plena madurez,

Nutrir-se em alheio sangue de alheia fluidez,

Nos meses que compõem, em seu nutrir de feto,

O mesmo sonho humano, fervido no embrião,

Que a nós nos refecunda, em tangencial afeto

E à morte nos expulsa, no fim da gestação.

SÃO BARTOLOMEU II (2 JUN 10)

Nascido para a morte, tão logo vejo a luz,

meu corpo em expansão de pura distropia,

rancor desse universo amante da entropia,

em mim se manifesta no fado a que conduz.

Um saquitel de sonho, invólucro de mus-

go, em pele transformado, quimera de elegia,

na fluidez sublime desgasto essa energia

que em mim se concentrou enquanto amor reluz.

Porém, para nascer, matei os meus irmãos:

somente eu penetrei no óvulo materno,

que todos temos culpa desse primeiro incesto.

Milhões que pereceram, sem terem corações,

para que eu visse hoje o dealbar do inverno,

igual que tu culpado de um fratricida gesto.

SÃO BARTOLOMEU III

Não é de admirar que tais competidores,

que souberam alcançar a luz deste fanal,

assim permaneçamos gulosos, vencedores,

após romper membranas, sem lamentar o mal

causado à nossa mãe, rompendo-lhe o canal:

que egoístas somos todos, nascemos entre dores,

de sangue recobertos ao mundo natural,

na esperança de à luz alçar-nos quais condores.

Por isso, ainda lutamos, quebramos os espaços,

sem grande desperdício de humana simpatia...

E o mesmo repetimos, a cada geração,

abraçados assim, na busca dos regaços,

em novo desafio às leis dessa entropia,

enquanto nos perdure o bater do coração.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 21/05/2011
Código do texto: T2983464
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