INSTINTOS PRIMORDIAIS & MAIS

INSTINTOS PRIMORDIAIS

Os gatos sempre escondem seus excretos.

"São caprichosos", dizem... Acredito

que o façam por motivo mais maldito:

para esconder seus crimes mais secretos...

Assim, ao enterrarem seus dejetos,

o que sobrou do passarinho aflito,

do sapinho escondido ou do conflito

com outros gatos na luta por afetos

das donzelas felinas, sangue e pelos,

que lhes desceram assim pela garganta,

se manifestam em higienes consagradas...

Não que revelem em limpeza seus desvelos,

mas é que escondem o cheiro que os espanta,

como os fantasmas de refeições passadas...

VÉUS DE TULE VIII

E quando vê tal artifício fracassar,

desprende o quinto véu da malquerença;

em todo o seu pisar se mostra tensa,

agita o corpo em novo mergulhar,

sereia despertada ao maltratar,

ao invés de seduzir, mostra uma imensa

variedade de expressões, sua raiva é densa,

porque, em sua dança, não pôde conquistar;

e ao mesmo tempo, não ousa confessar,

nem sequer a si mesma o sentimento

que lhe borbulha ao peito e, num lamento,

lança de si o véu, a demonstrar

o quanto está em jogo e o quanto vale

seu coração, por mais que orgulho o cale...

HÁPAX LEGÓMENON (Dito uma só vez)

Agora é moda salientar os seios,

como nos filmes, nesse antigamente

que o século dezenove faz presente:

os ombros nus, vestidos só de anseios...

E como é bela a visão desses alheios

apêndices mamários tão frequente...

Mesmo sabendo que a visão fremente

não nos pertence; enfim, que essas ameias

da fortaleza da blusa ou do vestido

serão intransponíveis para nós...

Mas ainda assim, essa visão é bela.

Ai, sedução revelada no tecido,

num cristalino convite, os seios sós,

que me espiam como jovens na janela!

HELIEIA (Assembleia)

Ai, como quereria não fossem só fantasmas,

povoando etérios os meus pensamentos,

essas mulheres que assanham sentimentos,

na pura chama azul das mentes pasmas...

Mulheres jovens são, mulheres velhas,

todas possuem seu grau de sedução,

que provém muito mais do coração

que do semblante, porte ou das guedelhas... (+)

E o poema surge em mim, toma de assalto

as faculdades todas, tropelia

desencadeada em estupros inocentes...

E explode em concussão, rugido alto!...

São fantasias, sim... Mas bom seria

que tais fantasmas fossem diferentes!...

(*) Mechas de cabelos.

LÁSTIMA I - Wm. Lagos, 28 MAI 06

[sobre Eclesiastes 7:2].

Melhor é ir à casa onde se vê tristeza

do que àquela em que celebram o festim;

o luto é mais sincero e mostra, assim,

da vida humana a perenal certeza;

qual diz o Pregador, nossa incerteza

está em não saber o bem e o mal, enfim,

que nos trará o dia, embora seja o fim

conhecido de todos e venha com presteza.

pois quer o Santo Livro que nosso coração,

abandonando o riso e desposando a mágoa,

se fortaleça assim e aceite seu destino.

Mas tenho para mim que os olhos rasos d'água

de amor deviam ser, de um gozo mais divino,

que nos faça crescer também na exaltação.

LÁSTIMA II

Porque essa mágoa toda, no fim nos traz revolta:

Se algum dia eu cresci, não foi o sofrimento

Que me tornou melhor, não foi a amarga escolta

De mágoas e tristezas, em fero ajuntamento;

Porém o condoer: a pena que se sente,

Ao ver o sofrimento daqueles que enxergamos,

Sem poder consolá-los, mas por se estar presente,

Ao menos simpatia aos fracos demonstramos.

Porque, se um deus existe, é este um deus de amor,

Não se compraz na dor, nem faz sofrer também:

Quem causa o sofrimento é o próprio ser humano;

A alegria é divina e assim, nos traz vigor,

Se brota em nosso peito... e não há maior bem

Que retornar à calma um coração insano.

PRIMAZIA

NOSSO AMOR FOI TÃO CURTO E TÃO PEQUENO...

AMOR DE ADOLESCENTES, TÃO VIGIADOS...

TANTOS OLHARES AO OMBRO DEBRUÇADOS,

TANTOS SORRISOS DE SUTIL VENENO...

NOSSO AMOR FOI TÃO BREVE E FUGIDIO...

ROUBADO INSTANTE, UM FIGO TEMPORÃO,

NUM CLÍMAX FEBRIL, NOSSA ILUSÃO

REFEZ-SE EM VÉU BEM LONGO DE VAZIO...

E NOSSO AMOR, PEQUENO E CINTILANTE,

NA ALMA REBROTOU-ME, EM DOCE CANTO,

DE UM ÍNCLITO ESPLENDOR NA MADRUGADA...

NOSSO AMOR FOI CONDÃO DA MESMA FADA:

LEVE BOTÃO DE FLOR, BRILHO DE INSTANTE,

FOI TÃO PEQUENO... E A MIM ENCHEU-ME TANTO!

BORBORINHO

Eu não sabia, mulher, que o ardor antigo

Queimava dentro em ti, na escura flama:

Que em arcano ritual, centelha e drama

Incólume jazia em teu jazigo.

Eu te juro, mulher, que eu não sabia

Que todo o ardor sombrio de teu beijo,

Inatingível sempre ao meu desejo,

No fundo de teu peito ainda luzia.

Eu só confesso, enfim, que te esperava,

Porém sem esperança, entendes? Frio,

Cerceando sempre o ardor que me assaltava,

Por entender que o coração vazio,

De toda essa esperança que acenava,

Não se encheria jamais de teu rocio...

(*) Prefiro a variante 'BORBORINHO', do italiano 'BORBORIGNO', do que a forma mais tradicional portuguesa <Burburinho>.

CANTO INDECISO XXXVII

Nunca aceitei nenhum materialismo:

a vida, para mim, tem criador,

em toda a presciência de um valor

que não se prende a qualquer reducionismo.

Percebo haver missão no virtuosismo

com que dedilho versos, sem pudor,

algo me impele, sem dúvida, maior

que o sussurrar de um simples mecanismo.

Portanto, ainda acredito que se encontre,

além do fim, um fim para alcançar:

que não seja só o fim que nos recontre.

Depois, se for assim, qual a importância?

Não saberemos mesmo dessa instância,

se um parafuso for o último a quebrar...

VERSOS MORTOS I

Eu tinha um deus. Um deus bem pequenino,

que até cabia na palma de minha mão,

um deus magrinho, de chumbo, masculino,

mas dotado mesmo assim de compaixão.

Era um deus inconsciente, sem paixão,

um deus cinzento, como o som do sino,

deus pobrezinho, baixo-relevo fino,

a cumprir de mau grado sua missão...

Um triste deus, de dúvida composto,

gravado outrora no meu coração,

à custa de insistência e mandamento...

Um rei que nada faz, sempre indisposto,

de bênção incapaz ou maldição,

mas arraigado no meu julgamento.

VERSOS MORTOS II

Era um deus fino, relevo de medalha,

dourado sem ser ouro. De latão...

Mas seu valor vetor maior entalha

na correntinha junto ao coração...

Perplexo este deus, um deus de palha,

desencarnado de sangue e de pulmão,

um deus carente, sem qualquer perdão,

desmerecendo a dúvida que espalha...

É claro que não tenho... Nunca usei

sequer aneis, quão menos medalhinhas,

fossem belas ou não. Meus deuses eu benzi

e quando me quiserem, eu irei

para estas deusas de bênçãos mesquinhas,

os meus fantasmas pelos quais sofri.

William Lagos
Enviado por William Lagos em 14/06/2011
Código do texto: T3034005
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