SOMBRAS DO PASSADO

SOMBRAS DO PASSADO & MAIS

WILLIAM LAGOS

SOMBRAS DO PASSADO I (12 MAI 13)

Muito embora um adeus desse às ilusões,

Muito embora esquecesse os sortilégios,

Muito embora desprezasse os sacrilégios

Que sempre envolvem a idolatria das paixões,

Muito embora descartasse as concessões,

Muito embora não me contem nos egrégios,

Muito embora em exclusão dos florilégios

Que sempre envolvem as famosas procissões,

Muito embora sendo estranhas para mim

Essas mil fantasmagorias litigantes

Que se apresentam despudoradamente,

Ainda busco um sonho carmesim,

Em que cacos de amor, ainda brilhantes,

Qual em mosaico, se encaixem suavemente.

SOMBRAS DO PASSADO II

Amor é sombra e travo de conhaque,

Doce no início e de fervor ardente,

Porém deixando um ressaibo permanente

Nesse amargor ritmado de atabaque.

Amor guarda o laranja desse caqui,

Doce no início, depois indiferente,

Que sobre a língua fica adstringente,

Leve azedume em ilusão de araque.

Amor é travo anis, licor de raki,

Que já provei nas plagas da Turquia.

Mas só agora recordo num soneto

Esse resto vazio do final saque,

Quando a taça do amor já se esvazia

E só nos deixa o seu zurzir secreto.

SOMBRAS DO PASSADO III

Os anos passam e se indagam as pessoas

Aonde foram os já perdidos dias,

Aonde as sagas, as églogas e elegias,

Aonde a adolescência, em tantas loas?

Muito embora, lembrança, ainda me roas,

Jamais te quero de volta, em fantasias,

Só quero a vida do além, em suas folias,

Por mais que a carne em meu futuro moas.

O passado se foi, resta o presente,

Mas o presente só um momento resta

E o futuro, em suas sombras, o remove...

Que o tempo nem exista se pressente,

Salvo no instante fugaz da pura festa

Que se escoa, sem que nunca se renove.

SOMBRAS DO PASSADO IV

Muito embora às ilusões, conscientemente,

Eu tenha dado adeus, oásis brancos

Ainda perduram nos sentimentos francos,

Pois não passa de ilusão o meu presente.

As sombras do passado se pressente

Como sólidas rochas em barrancos,

Que galgar só se pode em longos trancos,

Fantasmas a esfuziar da fé do crente.

Quem nos garante que o passado foi assim

Ou que o futuro em solidez persiste?

Quem nos concede o instante fugidio,

Em que a roseira se abre no jardim,

Em que o corpo da amante nos insiste

Por inda crer na água fresca desse rio?

NOITE DOS TEMPOS I (13 MAI 13)

Que é o vento, senão outro abantesma

Que se recosta em nós, constantemente?

Que é a fé, senão o bem presente

Que se retoma à luz de uma quaresma?

Que é o tempo, a sorrateira lesma

Que se arrasta sobre nós, lividamente?

Que é a sombra, a fragorosa lente

Que se expande atrás de nós e nunca é a mesma?

Que é a chama, em seu tom laranjescente,

Que sobe para o ar e se dissipa?

Que é a fumaça, que no ar palpita,

Que se faz bruma de tom opalescente?

Que é o amor, que tão feroz se equipa

Que cega em luz a cada olhar que o fita?

NOITE DOS TEMPOS II

Ninguém me diga, assim, que o vento exista,

Quando dele nunca vemos mais que a pista;

Ninguém me diga, então, que exista a fé,

Nesse intangível valor em que acha a sé;

Ninguém me diga que hoje o tempo exista

Nesse momento que se come e se conquista;

Ninguém me diga, então, que existe sombra,

Nessa tal perseguição que nos assombra;

Ninguém me diga, outrossim, que exista chama,

Só por que o fogo os dedos nos escama;

Ninguém me fale da fumaça ser real,

Salvo em narina que aferventa com seu mal,

E então de amor o existir ninguém me diga,

Salvo inconsútil irreal que se persiga.

NOITE DOS TEMPOS III

Quantas coisas se perdem nessa noite!

Para onde foi o vento da memória?

Para onde foi da antiga fé a glória?

Para onde foi o tempo, em seu açoite?

Quantas coisas ressoam nesse aboite!

Para onde foi a sombra merencória?

Para onde a chama rubra de incorpórea?

Em que algures a fumaça encontra acoite?

E contudo, amor é noite no seu dia,

Amor é o vento que nos toca a face,

Amor é o tempo que de nós zombou,

Amor é a sombra esbelta e fugidia,

Amor é a chama e a fé que se estampasse,

Fumaça e bruma do passado que escoou.

CHAPPER BOARD I (14 MAI 13)

Nossa vida é uma prancha descascada,

que foi deixada solta sob o sol,

cheia de líquens, toda acinzentada,

traços de sangue que revela o luminol;

cada voluta a se erguer em caracol,

pela fúria do vento arrebatada,

após a chuva cobri-la de encharcada,

ressequida e enroscada em cachecol...

Contudo, ela perdura na intempérie

e sob a casca, tornou-se mais robusta:

sob a procela, cura-se a madeira,

corroída pelos anos ante a série,

corroída ante a vida mais vetusta

e ante o peso dos anos sorrateira...

CHAPPED BOARD II

Tal qual os lábios se cortam sob o vento

ou sob a rasgadura de uma geada,

a nossa vida é, aos poucos, arranhada,

seu exterior retorcido num portento;

mas após alguns dias, toma assento

essa pele dos lábios levantada:

se um pouco cai, por dentro é renovada,

enquanto a vida interior conserva alento.

Alguns artistas há que vão à praia,

justamente para achar cerne curtido

que à escultura melhor se prestará;

ou fazem marcos dessa mesma raia

para janelas e portas do perdido

esqueleto, que ao rigor não mudará.

CHAPPER BOARD III

O que não mata, dizem, fortalece;

e mais ainda, o que não mata, engorda;

pois que me venham obstáculos em horda,

que a fortaleza, desse modo, cresce;

Sempre que nova maldade comparece,

igual destino para mim concorda:

se a pele arranca-me, é somente a borda,

enquanto o élan vital em mim não cesse.

Não sei se Bergson foi assim lixado

pelo rigor de tempestades más

e se, ao final, seu élan se conservou.

Quanto a mim, muita vez já fui provado,

mas superei o sol, a chuva e o gás

e dentro em mim o ardor se renovou.

TRANSEUNTES I (19 MAR 08)

Eu olho para o mundo da janela

e vejo as pedras lisas de minha rua.

Quanto esforço alisou a rocha nua,

quantos meus passos também cruzaram nela!

Vejo nas gretas desse calçamento

de calhaus ajustados sem carinho

o mesmo que sucede no mesquinho

desajuste do mais puro sentimento.

Que estão elas ali, por ser pisadas,

esmagadas pelas rodas das carroças

e repolidas por rodas de borracha!

Que tantas vezes passaram, em suas lidas,

lançando sentimentos em suas fossas

e as arestas apagando em luz de graxa...

TRANSEUNTES II (16/5/2013)

Para quem olham as pedras de minha rua?

Quando o sol brilha, vejo seus reflexos

e quando chove, a água empresta nexos,

em tempos de umidade a pedra sua;

se lhes perpassa de leve a luz da Lua,

elas respingam a prata dos amplexos;

quando passam os casais bordejam sexos,

e até a emproada vaidade da perua...

Eu vejo as pedras... Será que elas me veem...?

Quantas vezes minhas solas as pisaram!

Inda que outros certas vezes as arrancaram

e nova face seja essa que hoje têm,

enaltecendo no saibro os seus segredos,

nessa adega sutil de tantos medos...

TRANSEUNTES III

Eu vejo as pedras por cascos demarcadas,

eventualmente por esterco alimentadas

ou pelo sangue de feridas desvairadas:

por essas gretas relva atrevida espia...

A pobre erva que por vida se iludia,

nesse constante esmerilar das carroçadas,

no gotejar tremulante das passadas,

sementes pobres a rebrotar em nadas...

Dos automóveis e pesados caminhões

dança a poeira de distantes estações

e de mistura com elas tais sementes,

que se inserem nas fendas, semi-humanas,

verde esperança que só têm cotiledôneas,

tomando o sangue por adubos suficientes.

TRANSEUNTES IV

Mas que olhos arregalam-me tais pedras!

Essa umidade em que mais se escorrega

não é da chuva ou sereno que se emprega,

mas são lágrimas causadas pela poeira.

Pedras quadradas, redondas, pedras tetras

édros de pedra, que o destino nega,

paralelepípedos ou quebrada rega,

abrindo os olhos de espanto nessa jeira.

Já embaçadas se encontram pedras cegas,

suas bocas murchecidas por tropeços,

seus ouvidos preenchidos de cortejos...

Mas na dureza que à firmeza legas,

as pedras dormem seu carpir de gessos,

dos calcanhares recebendo beijos...

TRANSEUNTES V

Eu vejo as pedras quando olham para mim,

suas vistas rígidas, rodapé das vistas,

pupilas sem piscar sob essas pistas:

percebo as pedras a perceber-me assim.

Eu vejo o cinza das pedras no seu fim,

eram rosas ou azuis, hoje são mistas;

não são visões de tolo, ainda que insistas...

Por que não vês das pedras o alecrim?

Pois essas pedras avistaram muito alfim;

aqui desceram longas procissões,

nesses cortejos de mortos importantes;

também, às vezes, empós elas vim,

ergui também as alças dos caixões,

na lenta marcha para os portões hiantes.

TRANSEUNTES VI

Mortos e vivos passaram por aqui,

que as pedras viram, em sua indiferença;

viram as solas da borracha tensa;

com meus solados de couro as percorria.

Havia curtumes também, bem logo ali,

no fim da rua, com fumaça densa;

subia o cheiro, confirmando a crença

que era dos mortos o cheiro que eu sentia.

Eram somente as cascas desses bois,

abatidos sem quaisquer sombras de dós;

ossos moídos por adubos ou rações;

e após os passos marchados dois a dois,

sobre esse saibro das suas fundações,

as pedras ficam, só passamos nós.

ARRIBAÇÃO I (17 MAI 13)

Os patos voam, grasnando, para o norte.

Na Patagônia passaram os verões.

Como é estranho que suas breves pregações

eu só escute quando o sol se ausenta!...

Não os ouço quando o vento tem mais porte.

Estarão acocorados aos montões?

Ou nadam o dia inteiro em lagoões?

Só sei de dia nenhum bando se apresenta.

Pode ser que os ruídos da cidade

me impeçam de escutar o seu grasnar,

qual me impressiona durante a madrugada.

(Talvez quisesse igual felicidade

de sair pelos ares a cantar,

desses patos seguindo a revoada...)

ARRIBAÇÃO II

Eles se movem assim, triangularmente.

Dizem que o pato líder sofre mais,

pois corta os vastos ventos imortais

a se apoiar em nada, ao que aparente.

Após sua esteira, segue o bando, mais contente,

aproveitando tais cortes naturais,

os invisíveis obstáculos fantasmais,

numa almofada de zéfiro fremente.

De quando em vez, ele solta outro grasnido,

em tom menor, talvez bemolizado,

para indicar que se acha já cansado...

Vem outro à frente, no voo sustenido

e escorre o pássaro ao fim da revoada,

batendo as asas só de leve na empreitada...

ARRIBAÇÃO III

Falam que seguem as linhas magnéticas

que circundam a Terra, até o destino;

é assim que os patos nadam no ar fino,

em seus vês de vitórias bem proféticas...

Pois podemos jurar, por fontes éticas,

que sempre encontram seu lago pequenino

ou lento rio, de escoo peregrino,

em nós a despertar canções estéticas...

Nunca pensei em caçar esses marrecos,

patos ou gansos, grous ou mergulhões,

porém não pousam sobre o meu telhado...

Decerto buscam poleiros menos secos,

esses palmípedes de gentis colorações

e só me deixem a escutar, ensimesmado...

COÁGULOS I (19 MAR 08)

Parti meus ossos em busca desse amor

inveterado; e nem sequer sorri.

Quebrei-me as pernas e nem padeci

mais do que a bênção fecunda do estertor.

Rasguei-me as veias empós um tal ardor

imoderado; e nem sequer sofri.

Vazio meu coração, nem percebi,

na escala muda do arco-íris incolor...

Nessa tortura branda, assim me giro

no túmulo da alma, sepultando

as ânsias mudas deste amor mesquinho.

E, por quebrar as pernas, já não ando;

e, por perder meu sangue, não respiro,

senão meus versos... secos de carinho.

COÁGULOS II (18 MAI 13)

Caso algum dia eu faça um inventário,

verifico a soma exata que gastei,

não somente do dinheiro que empreguei,

mas em variado avaliar de numerário,

já que fui, em permanência, solidário,

do amor de alguém jamais me alimentei

e se algo me entregaram, mais eu dei;

sem ter serviços, paguei vasto salário.

Foi a vida, a pouco e pouco, retirando,

o quanto eu poderia amealhar,

que em benefício dos outros entreguei,

meu coração apenas confortando

por ter sido capaz de os auxiliar,

acima e além do que indicava a lei.

COÁGULOS III

De fato, se fizer a avaliação,

de quanto vale o sangue derramado?

Qual o valor do músculo rasgado,

quanto a grama que tirei do coração?

Quanto darão por meio quilo de ilusão

ou por ossos quebrados, no apressado

saltimbanco buscar do ser amado,

pelotiqueiro rufar de meu pulmão?

Acerto, assim, não haverá de contas...

Meus devaneios por nada pagarão,

mesmo provado serem devedores;

e jamais conseguirei juntar as pontas

desses rompidos laços de paixão

que de mim afastaram meus amores...

COÁGULOS IV

Mas nem por isso o sangue se perdeu:

foi recolhido e transformado em tinta...

Cada pingo vermelho aqui se pinta,

molhada a pena na linfa que escorreu...

E mesmo a perna partida já correu,

quebrado o braço, brando nova finta,

quebrada a alma, que outra vez eu sinta

todo esse ardor que outrora concebeu!

Já morto o amor, caminho novamente,

gravando versos sobre a sepultura:

terão os sonhos mortos esqueletos?

Ou só arcabouço de poema descontente,

fabricando do amargor nova doçura

e nos sepulcros pesadelos mais secretos?

A CRIPTA MOFADA I (20 MAR 08)

Campo santo de beijos é meu peito,

espasmos de desejo contrafeito

provocaram enfartos, em perfeito

fator assassinante dos meus versos.

Que permaneçam em tal periclitante

pilha sem rumo; ou só por um instante

sejam lidos talvez, num murmurante

sussurrar de outros lábios tão dispersos.

Por tua memória de curta duração,

anamnese isenta de sintomas,

manifestada nessa estranha calma,

que me leva a escrever em galardão

essas mil discrepâncias que me tomas:

cacos de vidro entretecidos nalma!...

A CRIPTA MOFADA II (19 MAI 13)

Em tua memória foi que me enterrei,

pois me esqueceste e pereci em ti;

e porque dentro em tal memória pereci,

em tuas redes neurais me sepultei;

dentro delas, longo tempo perdurei,

até que a morte tua eu pressenti;

só então juntei meus ossos e fugi,

para meu próprio ventre retornei.

Mas ao voltar para mim, vi-me mofado,

recoberto de líquens e de limo;

trouxe de ti o mal que me fizeste;

e embora tenha já em mim ressuscitado,

deixei dentro de ti minha graça e mimo,

que penduraste num mural e já esqueceste.

A CRIPTA MOFADA III

Qual destino persegue uma memória,

depois de derreter redes neurais?

Lembra os espírito das mil coisas materiais,

ou se limita às vastidões da glória?

Guarda a alma recordação peremptória,

ao se evolar para os lares siderais?

Ou traz lembranças reencarnacionais,

somente enquanto conserva-se incorpórea?

Nesse caso, quando alguém que já morreu

percepções leva de mim, que me tirou,

o que fará com essas luzes que roubou?

O que conserva esse olhar que pereceu,

de quanto reflexo amealhou que já foi meu,

que espelho algum de fato me mostrou?

A CRIPTA MOFADA IV

Nossos reflexos são sombras e são luz,

nada mais que a percepção do véu solar,

que tão somente a visão vai captar

e então os guarda dos cílios no capuz

e sobrevivem só na mente que os conduz,

durante o tempo em que os possa recordar;

mas também a interpretação de nosso andar,

a nossa voz e as palavras que produz,

pois o som que da garganta sai ao mundo

não tem o timbre que nós próprios ouvimos,

pertence aos outros, como a luz do olhar;

e assim se vive, em palpitar profundo,

nas emoções que nos outros produzimos

e só perduram enquanto outrem as guardar.

ESTILINGUES I (20 MAR 08)

Eu insisti com a vida, desejando

que os bens da terra caíssem no meu colo;

por tais desejos tão só a garganta esfolo,

porque o destino apenas vai passando...

Cresci, mas aprendi que só tentando

lutar pelo que quero é que irá pô-lo

em meu regaço: comprarei o bolo

com meu trabalho; e nunca derramando

ardentes preces ou anseios caros;

os resultados só chegam quando insistes

e, para amor, não basta um leve toque,

nem persistência de poemas raros...

Mas olha para o céu -- talvez me avistes

derrubando mil estrelas a bodoque...

ESTILINGUES II (20 MAI 13)

Quando as estrelas estiverem bem maduras.

eu subirei na copa rasa de um umbu,

tendo na mão longa vara de bambu,

para do alto fazer tombar as puras;

estrelas verdes não quero, que são duras;

só as quero pintalgadas qual peru,

ou mesmo negras igual asa de anu,

caindo ao colo quais figos de doçuras.

Vejo estrelas demais na vastidão;

há milhares para cada que é visível,

que importa, pois, que eu derrube algumas?

Far-te-ei colar para o meigo coração.

nele criando doçura inexaurível

do amor fremente no qual tu me consumas.

ESTILINGUES III

Pois para cada estrela que te der,

bem junto ao coração irá meu pejo,

já que te esconderei o meu desejo,

nessa “primeira estrela que vier”.

Não te direi do meu amor sequer,

quando trouxer de nova estrela o ensejo,

quando te der qualquer cometa andejo,

nem dessa ânsia de amor que mais se quer.

O cometa serei eu, leve chuveiro

de rosáceas de esmeraldas e diamantes,

rastro de fogo feito em turbilhão;

e a estrela serás tu, em seresteiro

despertar dos devaneios mais brilhantes

nas plagas áridas de teu coração.

ESTILINGUES IV

Eu te daria o néctar da estrela

e da coma dos cometas a ambrosia;

teu lanche sobre o Sol aqueceria,

traria queijo e sal da Lua bela...

E moeria dos meteoros a procela

como farinha para o pão da eucaristia;

hóstia sagrada que em cibório via,

pão de minhalma que em galáxias vela...

E te daria o vinho dos planetas,

nesse turíbulo de constelações,

em fumaça a entretecer o meu sudário;

linha e cordão das emoções secretas,

pano da fibra de nossos corações,

na redolência da mirra do incensário.

yannar I (21 mai 13)

existe amor nas poeiras estelares

e quando os meteoros nos atingem,

mesmo os mais fortes que até raças extinguem,

é por amor que buscam-nos por pares.

meteoroides são deuses tutelares:

na vagina da Terra amores fingem,

porém é estupro que com ânsia nos impingem,

gotas de sêmen em vagas constelares.

cada pequeno pingo em nova vida,

formando estrelas nos ventos militares:

assim nasceram os cintos de asteroides

e se a doutrina destas linhas não for crida,

que na aurora boreal solta nos ares

se creia ao menos, em sonhos paranoides.

yannar II

algum cometa meus ouvidos penetrou

e ali seu nome, mansamente, sussurrou;

depois, pelas narinas escapou,

deixando apenas seu nome solitário.

tomei da pena, em esporte solidário

e o incluí, sem perceber ser funcionário

de qualquer experimento temporário

e em doce mágoa, cada verso rebrotou.

não sei de yannar a origem indiscreta.

embora exista até tal sobrenome,

ninguém conheço, nem me ligo a eles.

meu yannar tem a forma de uma seta

e percorre os espaços, onde some,

sem que em beijo de amor meus lábios seles.

yannar III

meu yannar é planetoide pretensioso,

que se recusa à atração de Zeus

e contra Ares rebela os voos seus;

meu yannar dá tombo perigoso

nas ondas voluptuosas do formoso

cosmos de anil e ônix sem deus

e se rebela também aos sonhos meus

belo yannar, que em pesadelo pavoroso

deixou em Júpiter a sua mancha vermelha,

arrancada de Marte em torvelinho,

rubro tição de perfume e gasoduto,

pelos braços da galáxia sua centelha

se prolonga, até ser ponto pequeninho,

que enfrenta o cosmos sem ter salvo-conduto.

Navegante i (23 MAI 13)

“NAVEGAR É PRECISO”, NOS DECLAROU PESSOA

E EMBORA SÓ NOS RESTEM RUDIMENTOS

DESSA ANSIEDADE POR DESCOBRIMENTOS,

NÃO É PRECISO SE LEVAR A VIDA À TOA.

EXISTE AINDA ESSA ESPERANÇA BOA

DE VIVENCIAR NOSSOS PRÓPRIOS CONDIMENTOS

E COZINHAR EM NÓS NOVÉIS PORTENTOS,

MIL CONTINENTES COZIDOS NUMA BROA.

SE NÃO EXISTEM DESAFIOS GEOGRÁFICOS,

AINDA EXISTEM MIL PAISAGENS DALMA

E OS DESCAMINHOS PARA DESVENDAR

PARA OS QUAIS NINGUÉM TRAÇOU OS GRÁFICOS

E QUE SE PODE PERCORRER COM CALMA,

SEM QUE NOS POSSAM TIGRES DEVORAR.

NAVEGANTE II

MAS ESSE MUNDO SÓ PARECE MAIS TRANQUILO,

SUA ROTA BRANDA TEM MIL IGARAPÉS,

FERAS ESPREITAM DE OCULTOS CABARÉS,

ESCONDIDAS EM PAPIROS DE OUTRO ESTILO.

QUE NAS ENTRANHAS DA ALMA HÁ MUITO SILO

ATOPETADO DE APODRECIDOS MAQUINÉS,

MÁS INTENÇÕES ALI ENCONTRAM OS SOPÉS,

MONSTROS DO ID DE INEXPLICÁVEL FILO.

E O NAVEGANTE DAS TERRAS IGNOTAS

EM SEU PRÓPRIO INCONSCIENTE ou em ALHEIO,

CORRE O RISCO DE AFUNDAR NESSE IGAPÓ,

ATÉ SUAS PROFUNDEZAS MAIS REMOTAS,

CASO SE ATREVA A VELEJAR SEM TER RECEIO

DE AS DESBRAVAR INTEIRAMENTE SÓ.

NAVEGANTE III

E ASSIM COMO O FUNDO DOS OCEANOS

DE ESQUELETOS SE ENCONTRA ATAPETADO

DE MARINHEIROS; CADA BARCO SOSSOBRADO

AS COSTELAS A MOSTRAR POR SOB OS PANOS

DAS ALGAS E CORAIS EM MUITOS PLANOS,

TAMBÉM O CÉREBRO FUNDAMENTE DEVASSADO

TRAZ O SEPULCRO DO INCAUTO DOMINADO

QUE NÃO PÔDE RESISTIR A TANTOS DANOS

PELAS PROCELAS DA ALMA PROVOCADOS

SOBRE AS TRAVESSAS DESSE BOTE, QUE NAVEGA

EM ÍNVIA ROTA PELO MANGUE DO INCONSCIENTE,

PELOS PRÓPRIOS TERRORES CALCINADOS,

CADA REMO E CADA LEME ALI SE ENTREGA

A SE AFOGAR EM TAL MÁCULA INCLEMENTE.

NAVEGANTE IV

E NESSAS PÉRFIDAS CONSTELAÇÕES

DO UNIVERSO INTERIOR, SEM INSTRUMENTOS,

SEM ASTROLÁBIO A DOMINAR PORTENTOS,

SEM OUTRA BÚSSOLA QUE LAMENTAÇÕES,

QUANTOS SE PERDEM NAS PRÓPRIAS EMOÇÕES

OU MAIS AINDA NOS ALHEIOS PENSAMENTOS!

SERÁ PRECISO NAVEGAR SOBRE OS ALENTOS

DE ANTIGOS POVOS EM VASTOS TURBILHÕES?

MELHOR ENTÃO TENTAR DIVERSA ROTA,

QUEM SABE NAVEGAR PARA AS ESTRELAS?

É MAIS QUE TEMPO DE SALTAR AO ESPAÇO,

ENQUANTO AQUI A PERSPECTIVA EMBOTA,

AGRISEAÇANDO DAS PAISAGENS AS MAIS BELAS

DESTE PLANETA QUE NOS PRENDE EM SEU REGAÇO.

NAVEGANTE V

EXISTE AINDA A NAVEGAÇÃO SOCIAL,

DANDO A IMPRESSÃO DE SER MENOS PERIGOSA,

MAS QUE DERROTA, DE FORMA PORTENTOSA

TODA ESSA GENTE QUE VEM DO LITORAL

E NÃO PERCEBE A CRUELDADE DO CORAL

BEM ESCONDIDO JUNTO À PRAIA ESPLENDOROSA,

O LONGO ESPINHO OCULTO EM CADA ROSA,

SEM QUE POSSUA DE SEUS MAPAS O UMBRAL.

E MUITA VEZ, NO AUGE DA CORRIDA,

QUANDO AS VELAS SE ENFUNAM, O TUFÃO

VEM DE REPENTE, SEM QUALQUER AVISO

E IGUAL QUE DO POETA A ANTIGA LIDA,

PELA ÂNSIA DE EXPLORAR NOVA NAÇÃO,

SE PERCEBE QUE “VIVER, NÃO É PRECISO”.

Navegante vi

PORQUE, AFINAL, O QUE IMPORTA É A TRAVESSIA,

TRAZEM OS SONHOS GARBOSOS UNIFORMES...

ALÉM DAS VAGAS DE MONÓTONOS CONFORMES

EXISTEM PRAIAS QUE ANTES NÃO SE VIA.

E POUCO IMPORTA JÁ SE SAIBA QUE EXISTIA

ESSA FLORESTA OU OS MONTES DESCONFORMES,

ENTREVISTOS ENTRE OS CÍLIOS, QUANDO DORMES

E A DESCOBERTA SEJA APENAS FANTASIA,

POIS NÃO FORAM NOSSOS OLHOS QUE AVISTARAM

AS MIL FÍMBRIAS DE AREIA NO PASSADO,

DAS QUAIS NINGUÉM CONTOU TODOS OS GRÃOS.

E POR MAIS QUE ANTEPASSADOS NOS LEGARAM,

AS MARÉS E FURACÕES TÊM TRANSFORMADO,

QUAIS SE TRANSMUDAM OS PRÓPRIOS CORAÇÕES.

SEMENTES DE SONHO I (24 MAI 13)

A maioria sonha em sua infância

E ainda ao longo se sua adolescência,

Porém, na idade adulta, com frequência,

Esquece o sonho como tola manigância.

Há quem conserve um rebanho em sua estância,

Alimentado na pastagem da indolência,

Sem fazer planos ou projetos de tendência

A realizações materiais de mais constância.

Porém são raros os que de fato sonham

E conseguem na vida contemplar

A grande obra imaginada no passado...

E quantos há que no real os ponham,

Só para ver o resultado e lastimar,

Por vê-lo totalmente realizado!...

SEMENTES DE SONHO II

É muito raro que o sonho realizado

Se assemelhe ao ideal preconcebido.

Em geral, é um resultado descabido,

Pálida imagem do sonho antes amado.

Mesmo das vezes em que é inteiro conquistado,

Da natureza humana, já é sabido,

Faz parte o insatisfeito do obtido:

Real o sonho, um outro é então sonhado.

E como é triste o louvor do resultado,

Se para nós já se mostrou vazio!

Só brilha a luz enquanto há esperança...

Para ser sonho, é essencial ser esperado

E ao ser pregado o derradeiro fio,

Como esperar aquilo que se alcança...?

SEMENTES DE SONHO III

Seria melhor ficar só na sua aguardança,

Para que o sonho por dentro nos aqueça?

Ou consentir que o sonho até se esqueça,

Para poder cultivar nova esperança?

Será melhor contentar-se com a bonança

Desse sonho real que já apareça,

Da maravilha que enfim ao seio desça,

Após ansiá-la desde os tempos de criança?

Sem perceber um travo de amargura,

Porque o sonho deixou de ser premente

E ressecou, após fazer-se mais viçoso?

Ou rebuscar nas cinzas por doçura,

Em que se encontre, talvez, outra semente,

A refulgir em novo sonho vigoroso?

POETA I (25 MAI 13)

Não sou poeta como esses por aí,

ansiosos por falar e por ser lidos,

em real orgulho por si mesmos tidos

e achando belo aquilo que escrevi.

Que o ache belo, talvez, depois que o li,

mas não que o conte entre bens havidos,

é somado muito mais nos bens perdidos:

feito o poema, ao mundo o distribuí.

Não é mais meu, não brande meu orgulho;

quando muito traz o talho de uma espada

que carne alheia corta e não a minha.

Saído foi de mim por meu esbulho,

lancei-o ao mundo e então fiquei sem nada

dessa torrente de sangue feita em linha.

POETA II

Portanto, eu digo, como disse antes:

não sou poeta, apenas faço versos

e nem os penso, surgem de diversos

diques de assombro e giestas de diamantes.

Não trago réstias de luz assim brilhantes,

nem me alimento desses versos tersos;

se os redijo, é que ao mundo são conversos,

são a ti que pertencem os seus guantes.

Não sei quem mos sussurra e se envaideço,

é por ter sido escolhido um porta-voz

desses delírios e delíquios dos profetas;

e se quero me expressar, eu emudeço,

engasgado em licor, igual que a foz

em que afluíram mil vozes de poetas.

POETA III

Se não consigo fazer versos sem rima

é porque não galanteio a multidão;

pois canto em solo estrofes de paixão

como cascata que se lança rio acima

e nunca busco de outrem fazer mima,

porque tudo se encachopa em profusão;

o meu problema é represar a confusão:

conter o jorro que as correntes lima;

destarte afirmo que não sou poeta,

bem ao contrário daqueles que se esforçam

por arrancar algo de si que está colado

e que precisam desprender com treta,

nas longas horas que o pensamento orçam,

sem dar lugar ao pensamento alado.

PELOTAS I (26 MAI 13)

Que Pelotas me perdoe, mas nunca gostei de lá;

para mim sempre mostrou o cinzor de sua umidade,

seus sisudos habitantes demonstraram frialdade

nas tantas vezes em que passei por acolá.

Em seus túmulos, meus ancestrais repousam já:

avós e tios e a especular fraternidade;

primos segundos e de menor proximidade,

em cada túmulo que nem sei onde é que está!

Nunca senti por ti, mil perdões, afinidades:

só via a cinza e o bolor de tuas fachadas...

Paleta nova veio maquiar teu centenário?

Quem sabe esse bolor é de minhas vacuidades?

Quem sabe a fotografo em áreas desoladas

nas que da própria alma escrevi meu obituário?

PELOTAS II

BEM RECONHEÇO SER TERRA DE CULTURA

E DE TER SIDO DE IMIGRANTES O CADINHO;

MEUS AVÓS E BISAVÓS, EM TORVELINHO,

EXPERIMENTARAM ALI DOR E DULÇURA...

BEM RECONHEÇO SUA INDÚSTRIA E CONFITURA,

MAS DOCE ENGORDA E ME ENJOA SEU GOSTINHO

POIS PREFIRO MUITO MAIS O SAL MARINHO

QUE FERVE O SANGUE ATÉ MAIOR PRESSURA.

BEM RECONHEÇO SE ACHAR LOCALIZADA

EM BOM LUGAR, FAVORÁVEL AO PROGRESSO

E QUE A BAGÉ, DE LONGE, SUPEROU...

EM SEUS DUZENTOS ANOS DE PASSADA;

MAS NÃO DESEJO APRESSAR O MEU INGRESSO

SOBRE ESSAS DUNAS QUE DEPRESSA DOMINOU.

PELOTAS III

No entretanto, eu lhe desejo boa sorte,

porém não quero a confundir com a minha;

mesmo agora que a velhice se avizinha,

que permaneça em outro lugar meu norte.

Cada cidade alcança o próprio porte;

prefiro então Bagé, mais pequeninha,

mas cuja gente, sob o manto de Rainha,

é mais cordial e para o frio mais forte...

Apesar de minhas andanças pelo mundo

para cá, sempre que pude, retornei:

meu pé de terra, protegida por coxilhas,

escondida, quiçá, em vão profundo,

que por motivo ou outro sempre amei

e que me deu para amar também suas filhas.

CHUVA NA CINZA I (27 MAI 13)

A chuva eu amo e nunca me entristece

essa semiescuridão que ela provoca;

é bem verdade que, oculto em minha toca,

eu a observo, enquanto a rua padece...

Sempre senti a chuva igual que prece,

que as bênçãos do céu a mim aloca;

amo os filetes, nos cantos de minha boca,

amo essa gota que na língua se entretece...

Eu amo a chuva mansa que se entranha

ou, como dizem no campo, que se cala

e vai cruzando até o saibro mais denso;

lençol freático renovando nessa manha,

até que a terra novamente fala

e me responde a tudo quanto penso.

CHUVA NA CINZA II

Eu amo a chuva, que lava a impureza

de cada interstício e cada fenda;

eu a percebo qual celeste prenda,

em vastidão de chita e de pureza...

Sua saia desbotou-se por pobreza

e por muito lavar, em casta lenda:

foram-se as cores da chuva na prebenda,

derramadas pelas flores, com certeza...

Pois quando o pasto resseca-se e amarela

e até as florzinhas têm medo de espiar,

a chuva desce, em carícia maternal...

E logo a pradaria se faz bela,

nesse breve batizado a renovar,

antes que a sugue o cruel sol estival.

CHUVA NA CINZA III

Eu amo a chuva feroz da tempestade,

sem temor do estrondar, entre o clarão

que precede alegremente outro trovão,

como a trombeta na hora da verdade...

Então desligo, com plena alacridade

o meu computador, porque, senão,

pode queimar alguma coisa e a profissão

requer funcionamento em integridade...

Pois relâmpagos não temo, realmente:

há muitos para-raios na cidade

e não sou tolo de andar no descampado...

Mas por trás da vidraça, bem contente,

contemplo essa enxurrada; e a opacidade,

sem querer, me deixa o peito iluminado...

FIM I (28 MAI 13)

eu tenho para mim saber o Fim

da vida que a meu lado me Convida,

da lida pálida que corre à toda Brida,

do sim e não que correm para o Assim.

tenho, outrossim, que o mesmo Balancim,

que à paz não dá guarida nessa Lida,

na incontida corrida a vida Tida,

é tão claro quanto um toque de Clarim.

foi feita a vida para ser Vivida

e não para indagar do seu Tragar,

nem requerer perfeição do seu Querer.

por que orar pela hora então Perdida,

se me apraz no respirar sentir Prazer,

enquanto a vida aparo sem Parar?

FIM II

eis que a vida me ampara, Certamente

e nos meus braços a tomo e então Aparo;

eu a acalento qual bebê que Amparo

e me acalenta a vida, Inteiramente.

já de há muito abandonei, Completamente,

a multidão do múltiplo Disparo;

dos ansiados anseios que Deparo

só vejo o fim no alfim do Finalmente.

enfrento então a vida, frente a Frente

e se me ataca, atacarei de Volta

o marginal amor da morta Margem,

na sensatez de assentar-me, Simplesmente,

nesse remanso macio e sem Revolta,

como estatuesca estátua à minha Imagem.

FIM III

certeza tenho que não fui Inútil

e se perduro, para algo eu Duro

e se perfuro o permanente Furo,

certeza tenho de um futuro Rútil.

a vida o favo inteiro do Inconsútil,

muralha branca do mais liso Muro,

doença a vida de que só me Curo

no desistir final do sonho Fútil.

por que buscar um fim para o Final,

quando o final me chegará, por Fim

e só tem fim o fim que não Chegou?

por que o afano por um tal Fanal,

quando o filme foi filmado até o Confim

que em espera adiante há muito me Esperou?

ACRÓSTICO I (29 MAI 13)

Minha tendência é mesmo desprezar

Inteiramente todo o acrosticismo,

Rasgada a mente na busca de um modismo,

Alma rasgada por um falso principiar.

Devo assim, por diletância, demonstrar,

Apolinicamente e em imaturismo,

Desse pequeno gênero o iludismo

Alcançado em esforço tão alvar...

Mirando nada mais que essa morada,

Orgulho tolo, em rasgo de vaidade,

Rotular com um título assim vão,

Alcançando, no final, igual mirada,

Despida de qualquer veracidade,

Ante um real palpitar do coração.

ACRÓSTICO II

Minha tendência seria mais o acrônimo,

Integrada em palavra frase inteira,

Roubada a pena de mente mais ligeira,

Acanhada por detrás de pseudônimo.

Destreza apenas em mostrar o homônimo

Alvo almejado por gente tão faceira

De tal capacidade corriqueira

Acolherada sob o manto do sinônimo...

Mil poemas de igual titulação...

Ora, direis, que garbosa companhia!

Raros foram a escapar da tentação,

Acrosticando nas malhas da intenção

De fazer mais outro acróstico em vazia

Alacridade sem qualquer razão!

ACRÓSTICO III

Marchemos, pois, na mesma usada estrada,

Inteiramente filmada a sua paisagem,

Riso amarelo contra os dentes da miragem,

Acompanhando a multidão airada!...

Demonstrando não mais que desastrada

Advertência a tal inútil vassalagem,

Deslumbramento vão pela pastagem

Anteriormente já lambida e desgastada...

Mil vezes perlustrar outra mirada

Onde se encrava tão só o sentimento,

Rimando as pobres rimas do momento,

Ao invés de arrendar igual morada

Demasiado conhecida e maltratada,

Apenas por zombar do pensamento.

CIRANDA DO TEMPO I (30 MAI 13)

Qual o problema, que seja transitória

essa beleza por mulheres tida?

A biologia, afinal, cumpre sua lida:

enquanto é fértil conserva certa glória...

Porém depois, inserida já na história,

só mais um elo na cadeia percutida,

pela malha do tempo já cumprida,

sua formosura se faz perfunctória.

Talvez se diga que a ação da biologia

é injusta para a vida transformada:

por que somente nós é que mudamos,

enquanto as demais vidas que se via

morrem sem quase transformar-se nada,

em seu súbito final que contemplamos?

CIRANDA DO TEMPO II

Na verdade, não se deve à Natureza

a culpa ímpia dessa transformação;

somos nós à velhice dar razão,

por vivermos bem mais hoje, com certeza.

Antigamente, chegava essa fraqueza

muito mais cedo, por má alimentação,

pelo vento, chuva e sol à exposição,

corpos desnudos na maior tibieza.

Ainda hoje, morrer antes dos trinta

é comum, em lugares primitivos,

em que se sofre da intempérie os trancos.

Não há motivo, pois, que a gente sinta,

por demorarmos longo tempo vivos,

qualquer tristeza por ter cabelos brancos.

CIRANDA DO TEMPO III

Lamento apenas quem não vê refletido

seu corpo antigo em filhos ou nos netos,

ou quem lastima por que seus diletos

repetirão o que já se tem sofrido...

Dia virá em que o ideal tão perseguido

pelos cosméticos e loções, mil objetos

que da carne disfarçam seus dejetos,

será alcançado por um povo bem nutrido.

Muito em breve surgirão os tratamentos,

alguns dos quais já em fase experimental,

que darão cor ou farão crescer cabelos

ou à pele garantirão alisamentos,

já detectado o gene natural

que em nós imprime da velhice os selos.

CIRANDA DO TEMPO IV

Então, mais do que nunca, se verá

a diferença entre as classes sociais;

quem tiver bens, poderá viver bem mais

e sua velhice jamais se notará,

enquanto os pobres, vivendo ao deus-dará,

com menos tempo de vida, os naturais

sinais da morte revelarão, finais

e a sociedade assim se cindirá...

Então, aos poucos, haverá reivindicações

e pela ânsia de lucro, esses complexos

farmacológicos seus preços baixarão...

Mas que lugar para as novas gerações

existirá no interior de tais amplexos,

em que os velhos jamais perecerão...?

A VIOLINISTA I (12 JUL 06)

por isso que te afastas: Porque pensas

que no instante em que teu corpo deres,

teu mistério esfalece, sem que esperes

conservar por mais tempo as cordas tensas

do violino que Plange minha ternura.

entregue o corpo em branda languidez,

nunca me deste, em meiga placidez,

porque não sei ler ainda a partitura...

e a esse arco viril, Que nas mãos tomas,

recusas o estojo; e então retomas

ao stacatto de um sonho de martírio...

não é assim comigo: Eu quero mais,

muito mais que teus órgãos genitais,

embora os queira também, no meu delírio!...

A VIOLINISTA II (31 MAI 13)

pois certamente Tuas cordas tanger quero,

com o meu próprio arco, em fibra tensa,

não de cauda de cavalo, igual se pensa,

nem de fibra sintética, assim o espero.

porque esse arco que de Mim em gero

é feito de matéria bem mais densa,

que a se partir demonstra ser infensa,

bem mais que o breu com que também o encero.

eram de categute, Antigamente,

algumas cordas atadas nas cravelhas:

tripas de gato, bastante resistentes.

são outras as Entranhas do presente,

que desejo friccionar, por que centelhas

relampejem em raios fulgescentes...

A VIOLINISTA III

Décima, Nona e Morta já mediram

o comprimento das cordas que te deram.

As Três Parcas assim te desfizeram:

tuas melodias nunca mais se ouviram.

estranho o som que ao Arco permitiram;

foi mais agulha com que assim o roeram;

mas teus sulcos para mim não se perderam,

conservo os discos que no prato giram.

há novos discos que Não tem vinil,

nos quais a música grava-se ao contrário,

indo do centro para a beirada externa,

de que brota um Raio lêiser mais sutil,

para tocar-te, em gesto solidário,

até que a luz de tua voz se faça eterna.

A VIOLINISTA IV

tomaste o arco: Apenas raramente

e não chegaste mesmo a executar

a melodia que se haveria de espalhar

caso o tomasses mais frequentemente.

porém dos dedos o DNA, bem fracamente,

ainda se encontra no arco a perdurar,

igual que o violino a acompanhar

dorme no estojo, compassadamente.

tantos compassos que Não se executou,

quanto ficou incompleta a partitura

que poderia ser composta para ti.

somente resta a Intenção dessa ternura

que nessas cordas não se manifestou

o som do arco que só eu concebi.