TOADAS DESIDRATADAS I/XII

TOADAS DESIDRATADAS I (4/4/2007)

Amor é negra fonte de martírio,

Algidamente escura em sua pureza:

Antes fosse esperança de certeza,

Alvura fresca de perpétuo lírio.

Assim como o candor de grosso círio,

Ao redor do ataúde, em vã nobreza,

Afasta as sombras da malvada empresa,

Almas levando a se adentrar ao Empíreo,

Abandonando o corpo passageiro,

A nossa vida também é abandonada,

Ao perpassar de um sonho tão ligeiro.

Ardor da alma assim espedaçada,

Árduo é o amor no instante derradeiro,

Alfim sabendo que não nos leva a nada.

TOADAS DESIDRATADAS II (5/2008)

O que é melhor lembrar, amor perdido,

Escuso nas entranhas do passado,

Amor vencido, amor atribulado,

Pelas rédeas do corpo conhecido;

Ou amor formoso, sempre concebido,

Como perfeito, por nunca desfrutado,

Amor presente no coração alado,

Que guarda a juventude, em dom querido,

Porque não foi, mas ter sido poderia,

Melhor do que ter sido e não ser mais,

Já que esse é o amor que vive derradeiro,

Esse amor do talvez, que nos daria

A sensação perfeita do jamais,

Pois só o nunca se ganha por inteiro!

TOADAS DESIDRATADAS III

Será que eu mesmo entendo por inteiro

Esse amor que já senti, de cintilança,

Esse amor de fagulhas de bonança,

Esse esperado amor do cavaleiro,

De armadura brilhante, alvissareiro,

Seu pendão auriverde de esperança,

A flutuar sobre o gume frio da lança,

Cálido e vasto sonho derradeiro,

Esse amor concebido por herói,

Que apenas quer a gesta ver cumprida,

Pela prenda recebida por condão,

Da bela dama que o coração lhe rói,

Mas que nunca beijou na despedida,

Enquanto ia vencer mais um dragão...?

TOADAS DESIDRATADAS IV

Eu nem te escondo que é idolatria

Essa noção que trago interiormente:

Somente adoração manter podia,

Reflorescido o vácuo amortecente,

Que em mim habita, se te vejo ausente;

Não é mais que uma luz que a mente cria,

Mesmo sabendo ser incoerente

Esse negro fulgor que me iludia...

Porque esse amor se sabe lateral,

Sem que encontre na vida seu condão:

É amor pelo amor e não por ti;

Mas se algum dia erguer-se o véu fatal,

Verás que não existe um coração

Por trás de tantos versos que escrevi.

TOADAS DESIDRATADAS V

Caso pudesse, um laço teceria

Com as lianas firmes de minhas veias:

Balançaria então, sobre as ameias,

Quando passasses pelo meu castelo.

E, num lance perfeito, o lançaria,

Eliminando tais ausências feias:

Roubava assim de ti teu rosto belo

Que para mim tão só conservaria.

Há muito deveríamos já estar

Ligados um ao outro, num jardim:

Tu te ressecas nessa solidão

Enquanto eu murcho por não te abraçar.

E o laço das artérias será assim

A sacra estola de nossa comunhão.

TOADAS DESIDRATADAS VI

A mariposa se arroja para a chama,

Ansiosa pela luz e por calor:

Não teme a mortidão desse fulgor,

Se arroja à chama e estala enquanto exclama.

A mariposa adeja nessa flama,

Na luz do orgasmo firme de sabor

E nem percebe talvez, em seu ardor,

Que queima as asas e a auriverde rama.

A mariposa vem de longe e busca a luz;

Talvez julgue ser sol visto na lama,

Que tanta vez beijou ao derredor,

Matando a sede no sol que a água conduz.

E como a mariposa beija a flama,

Assim se arroja o homem para o amor.

TOADAS DESIDRATADAS VII

Eu vejo em ti o amor subjacente

da primavera gris, sem ter aurora.

Adejo a teu redor por toda a hora,

na luz escusa de um olhar descrente.

Eu busco a ti na cláusula infrequente,

apenas um luzir no meu outrora...

Um farfalhar azul que foi embora,

enquanto te buscava totalmente.

Por três anos vivi nessa esperança,

sem nada receber, mas recebendo

a certeza do bem, do mal, do incerto.

E agora estou morrendo, sem tardança,

a vida era de ti e a estou perdendo,

tão longe que me estás, estando perto...

TOADAS DESIDRATADAS VIII

E é tão incerto perceber-se assim,

num farfalhar de luz, nuvem de gás,

qual bolha de sabão que se desfaz,

quando esvoaça, como em toque de clarim.

O ar que a havia formado era chinfrim,

faz-se estalido como um beijo que se traz,

escondido nos lábios e em horas más

se deixa solto, sem se dar, enfim...

Assim tal beijo, que nasce por um tris,

essa fresta de vidro espatifado,

fica a vagar numa esperança torta

de se reunir de novo à flor-de-lis

desse ar que brotou do peito amado,

mas se expandiu, qual alma que foi morta!

TOADAS DESIDRATADAS IX

Resiste apenas a película mais leve,

em torno da ilusão que se criou:

qualquer espinho que mal e mal tocou,

já a leva a explodir, suspiro breve.

Por isso, há ilusão que nem se atreve

a se achegar ao alvo que sonhou,

como um espinho que a tarde perturbou,

como uma falta que pagar se deve...

Assim, minha ilusão teme a quimera

de outro som de alvor opalescente

e mal se atreve a procurar ensejo,

ficando apenas no sabor da espera,

nesse temor de romper-se contra o dente

que a morderia no primeiro beijo!

TOADAS DESIDRATADAS X

Por isso é que eu hesito em te beijar

e a palavras de carinho me limito,

mas sempre assim meu coração agito,

que não se expande, mas sonha sem notar

que essa película tão tênue vá tocar

inadvertidamente. Contudo, eu acredito

nessas pestanas, qual vácuo infinito

que me protejam assim de teu olhar.

O que seria, caso me dissolvesse,

nesse exato momento de teu beijo

e só deixasse alguns respingos em tua face,

sem que nada mais de meu amor te desse,

que a torpe dissonância desse ensejo,

na umidade que em teu rosto se estampasse?

TOADAS DESIDRATADAS XI

Assim me encontro, dissolvido na toada

que nem sequer cantei a teu ouvido...

Nada mais foi que um devaneio desnutrido

na poeira fina desta canção desidratada

sem transformar-se na gala da balada,

nem farfalhar de um beijo malferido,

dos lábios contra os lábios num gemido,

da pele seca contra a pele ressecada...

Pois não te dou o meu anseio num suor

e nem meu líquido morno de saliva

e nem ao menos o olor da exaltação.

É um sonho apenas, devaneio de calor,

no corrupio da mesma roda-viva,

último alento que me brota do pulmão...

TOADAS DESIDRATADAS XII

Antigamente, a balada era romântica,

canção cheia de mágoa e nostalgia...

Talvez história cantasse de alegria,

mas em geral era composta de saudade.

Hoje a balada é uma dança corimbântica,

esverdinhada de malícia tântrica,

acorrentada à ferrugem da folia,

na mais breve explosão de eternidade...

E então prefiro a toada sertaneja,

qualquer modinha assoprada como palma,

em que o luar, igual compasso, adeja...

Pois em cada semibreve que se enseja,

eu cantarei a nostalgia em plena calma,

desse silente estridor que trago nalma!,,