COSTURAS / INTEMPÉRIE

COSTURAS I (2 MAR 13)

Do dia a ourela se afivela malva,

à noite se embainha lentamente,

as nuvens esgarçadas, rosamente,

na lançadeira do vento vão em calma.

São lençóis sem bainha, cada palma

despalmada de linha, linearmente,

torçais de fumo, plumas docemente

nos carretéis e agulhas de minha calva,

ao corpo presa por dois ou três colchetes,

sonhos nos furos redondos dos ilhoses,

debrum da morte em cores de batalha.

(Em minha boneca, espetam alfinetes

e as dores se repetem, iguais doses,

no pespontar das dobras da mortalha).

COSTURAS II

No coração um novo amor desponta,

cada linha matreira de outro tom,

cada nuance entrelaçada em som,

cada sabor que as amígdalas pesponta;

em cada noite, meu sonho se reponta,

se enrola no bordado, em morno dom,

torturado por felina em seu ronrom,

numa tocaia hipnótica que aponta.

Guardo minhas noites como peças de veludo,

nas prateleiras da loja de minhalma,

perfuradas de traça e desenganos...

Que delas possa recortar, me iludo

e tornar em realidade a escura calma,

nesses dias agitados por mil anos...

COSTURAS III

Porque a noite é só minha, no meu sono,

porém o dia pertence a muitos mais;

são mortas horas costuradas no ademais,

cada minuto, das eras novo dono,

deixou atrás segundos de abandono,

faz em retrós cor e vozes do jamais,

cheiros acres e sabores triunfais,

em largos carretéis de desabono.

Essas vidas dos outros, no tear,

eu faço minhas, no tear silente;

meu dia é feito de tais tapeçarias,

em gobelins de lento atarefar,

do chilrear de cada pássaro contente,

para cobrir-me durante as noites frias.

INTEMPÉRIE I (3 MAR 13)

A chuva eu amo, porém os carrilhões

que dobram a finados meu trabalho,

que me impedem de à bigorna pôr o malho,

esses mil raios anunciados por trovões,

interrompem minha labuta sem paixões,

o meu no-break desligo e torno falho

esse tropel de poemas que hoje espalho,

configurado por tais limitações.

Eu os datilografava, antigamente

e não sofria a interrupção plangente

das trovejadas fortes e apagões...

Se me faltava luz, queimava vela

ou trabalhava à beira da janela,

sem os caprichos das configurações...

INTEMPÉRIE II

O amor me cai como silente chuva,

escorrendo pela nuca e no pescoço,

trovoada mansa, feita de alvoroço,

acalentando meus dedos como luva.

Essa névoa de amor, que assim me escova

no corpo velho o coração de moço,

quimera bruta em seu carinho grosso,

como flotilha, toda a alma me renova.

Não creio na alma gêmea, em desalento:

são mil amores que brotar tentaram,

pela chuva lavados e desfeitos,

cada trovoada da vida, em igual tormento,

faz desligar a paixão que me acenaram,

nos escarcéus a relâmpagos sujeitos.

INTEMPÉRIE III

Antigamente, caso amor faltasse,

eu acendia a vela da saudade;

meu coração, robusto de impiedade,

aceitava qualquer que se mostrasse,

que de meu corpo o calor experimentasse,

até se implementar a saciedade,

o teclado quebrado em tempestade,

lavando a alma enquanto o peito descansasse.

Mas essa chuva de amor feito amizade

perdura e mal sei como a desligar,

nessa brancura de vastidão bravia;

não se interrompe ardor por longa idade;

ainda troveja em chispado cintilar,

enquanto a mente usufrui quanto sofria.