COSTURAS DE AMOR / COSTURAS DE AR / COSTURAS DE IMPROVISO

COSTURAS DE AMOR I – 30 NOV 2022

Depois que se partiu, meu coração grampeei,

não adiantou ali colar fita adesiva,

esparadrapo ajudou com mais reativa

firmeza em tais pedaços que juntei

e o coração, com cuidado, coloquei

de volta em sua gaiola permissiva,

cada costela uma grade repressiva

e a dobradiça do esterno então fechei,

que tantas vezes meu coração já se partiu,

sempre abalado por seus desapontamentos,

posto de lado por qualquer desdém,

que ao esterno encaixar bem não permitiu,

traz a ferrugem de antigos sentimentos

e mofo verde do amor recusado por alguém.

COSTURAS DE AMOR II

Meu coração hoje se encontra bem rosado,

tantas vezes se abriu que de encarnado

pouco lhe resta, perdeu todo o pecado

e só conserva as virtudes que não vêm,

mas que finge possuir e as válvulas que tem

já foi preciso recautchutar também,

com adesivos as envolvi, porém

e de algum modo o sangue ainda é bombeado,

não que me sobre muito, na verdade,

sempre o usei como tinta de poemas,

quando assim brota transforma-se em negror,

mas as artérias ainda têm necessidade,

sua ateroclerose é feita de minha penas,

chocando ainda qualquer enfarto de amor.

COSTURAS DE AMOR III

Meu pobre coração sofre a pressão

das palavras que se querem derramar,

a cada vez que de novo penso amar,

seja quem for a causadora da emoção,

mas coração partido é só ilusão,

pois quando vai realmente se magoar

é mais comum em caquinhos se tornar,

que em cada veia provocam gestação

de um novo amor que surja de repente,

sem que eu espere e sem sequer querer:

por precaução já vou abrindo o peito,

a pele enrolo e o portão subjacente

já se prepara para um novo malquerer,

na cicatriz de antigas mágoas sem proveito.

COSTURAS DE AR I – 1º DEZEMBRO 2022

Amor escorre lentamente pelo ar,

em sua busca de encontrar um coração,

mais facilmente introduz-se no pulmão,

para em alvéolo da alma se aninhar,

que amor não sabe, de fato, onde habitar,

sempre inconstante em sua viração,

brisa ligeira que se torna em gestação

da tempestade que pretende provocar,

que amor é coisa assim bem singular,

a gente julga que esse dom é nosso

e no entretanto, nós lhe pertencemos;

quando se assenta, pretende outro gerar,

mas qualquer coração encontra um fosso

até um outro, ao qual pular tememos...

COSTURAS DE AR II

Amor exige sempre a decisão

de que nosso coração abandonemos,

como em tapete mágico montemos,

para alcançar um alheio coração

e amor sorri em desafio nessa ocasião,

sabe-se forte e que o obedecemos,

por mais que saltar longe não queremos,

o que fazer, se não houver aceitação,

porque esse pulo de amor se faz no escuro,

sua distância bem difícil calcular,

qual resultado se o salto não se acerta:

no chão tombado tem destino impuro,

mas é a gente que ali fica a se estirar,

enquanto amor em revoada se desperta.

COSTURAS DE AR III

E então prossegue alegremente pelo ar,

deixando para trás o despeitado,

veloz outro peito será logo encontrado,

em que consegue facilmente se aninhar,

pouco lhe importa se os sonhos esgotar

de quem por ele ficou abandonado,

em nova carne confortável instalado,

para cem novas incertezas provocar

e que restou para quem o salto errou,

salvo ter seu coração despedaçado,

que por mil passos acabou sendo pisado,

com muito esforço enfim se levantou,

temendo o amor que retorna do seu lado,

ansioso ainda depois que tanto se encantou!

COSTURAS DE IMPROVISO I – 2 DEZ 22

Entre lânguidos e cansados blues,

meu pensamento se perde na modorra,

é necessário que a noite inteira corra,

enquanto a luz do sol não nos reluz,

mas é mais de noite que o devaneio nos seduz,

as sensações diárias torna em borra,

quando um desfeito amor então se torra,

como grãos de café fugindo à luz

que não refletem, seu exterior é baço

e a seu modo o blues é bem dolente,

sem ter reflexo, até nasce deprimente,

porém preenche de cada canto o espaço,

cada interstício de nossa mente encontra

e seu poder azulado então demonstra.

COSTURAS DE IMPROVISO II

Naturalmente o blues lembra a bebida,

esse demônio azul que nos espreita

do fundo da garrafa em cada feita

que a esgotamos em solidão nutrida,

mas a tristeza assim lânguida é perdida,

pois se desfaz enquanto nos sujeita,

como o álcool da garrafa nos aleita,

até levar-nos ao lado oposto de uma vida;

não como o jazz, que em geral nos entusiasma

e que executam, por vez com maestria,

nessa mágica experiência do improviso,

que a mente assalta e a audição nos pasma,

embora derive, o que talvez ninguém sabia

do klezmer judaico em insuspeitado siso.

COSTURAS DE IMPROVISO III

Por isso o jazz nos recorda facilmente

algum concerto de Bach em ritmia,

correm as notas em similar orgia,

enquanto a vida a recortar pressente;

desde criança, estava Bach presente

nos ad libitum da família em que vivia,

cada parente sua própria música tangia,

sequer compassos imitar frequentemente

e em Nova Orléans os escravos escutaram

essa sua música sinuosa e insinuante,

em instrumentos francamente a imitando,

por isso logo o ritmo encontraram,

até que a tristeza os tomasse de inquietante,

tal como blues em suas almas se instalando.