CANÇÃO DE ESTAMENHA / CANÇÃO DE ARGILA / CANÇÃO DE TECLADO

CANÇÃO DE ESTAMENHA I -- 4 FEV 2023

Sou eu. És tu. Somos nós dois. Ninguém

Pode entremear-se nesse enovelar,

Só duas meadas de cores a mesclar,

São duas cores e uma só também.

Qual um torçal de luz que a gente tem,

Fio multicor labirintino a resvalarr,

Alabastro composto por fios de luar,

Cor repentina que duas sombras contém,

Almas trançadas no tear do além,

Dois filamentos do mesmo carretel,

A mescla multicor em única bobina,

Nesta perfeita tessitura que nos vem,

Encantamento circular de mel,

Sangue tornado em bruma matutina.

CANÇÃO DE ESTAMENHA II

Que seja essa tua ausência de ouro fino

Uma flor de vazio no coração,

Como um cristal de gás a solidão,

Que me assalta em fragor de desatino,

Que me traga inocência de menino,

Feito tranquilo pela falta de emoção,

Quando te foste despediu-se a sensação,

Assaltou-me tal e qual clangor de sino,

Fez-se presença de um oco no meu peito,

A retirada de um ovo de serpente,

A luz escura que então se revelou

Numa implosão do coração desfeito,

Som apagado de um silêncio ingente,

A cor se foi e um cinza só deixou.

CANÇÃO DE ESTAMENHA III

Mas ainda sou eu e és tu ainda,

Somos nós dois e nem sequer a ausência,

Que me contempla em tanta complacência

Pode tornar a relação em finda,

Mesmo que o ovo de serpente se rescinda,

Ainda conserva a sua pertinência,

És tu em mim com idêntica premência,

Dentro do peito permanente e linda.

Pois somos os dois um só e o mesmo fio,

Que ao desenrolar mais se emaranha,

Mesmo partido não se desentranha,

Ainda os dois num idêntico pavio,

Que ao queimar não se acinza no calor,

Mas faz-se em vela perpetuada em seu vigor.

CANÇÃO DE ARGILA I – 5 FEV 2008

Eu vejo as marcas nas costas de minha mão,

Apertei não sei bem contra uma fenda,

Escondida por debaixo da fazenda

De uma toalha de mesa em largo vão,

Foram sinais de uma estranha aparição,

Um deles, não desejo que te ofenda,

Meu irmão muçulmano com esta lenda:

De um crescente assemelha-se à inscrição,

Onde se vê uma estrela e a meia-lua

E sob ela de novo outro crescente,

No qual cúficos caracteres eu percebo,

Outros sinais formando estranha rua,

Qual fora marca de fogo feita a rente,

Na mão esquerda por que nunca bebo.

CANÇÃO DE ARGILA II – 5 fev 2023

Quase sempre é difícil suspender

Esta escrita de grafismos e rascunhos,

Nelas derramo do coração abrunhos,

Nelas fica meu coração a derreter.

Se ali vejo meu penar, fácil é ler

Nessas linhas apertadas de meus cunhos,

Na prensada cuidadosa de meus punhos

A erupção que ainda agita o meu viver;

Penso até em alguns dias não fazer,

Mas a seguir logo abro essa comporta

E de imediato instala-se a alquimia,

Tal eclusa que se esvai em seu correr,

Num turbilhão fervente de retorta,

Em seu azul luminescente de magia.

CANÇÃO DE ARGILA III

Contudo eu vejo na palma de minha mão,

Na direita desta vez, estranha estrela

Em suas seis pontas, o que me indica ela?

Dizem ser da profecia a indicação,

Mas do porvir nunca fiz a previsão,

Que meu irmão judeu lembre-se dela,

Sem se ofender, porque a estrela é bela,

Mogen David formado de antemão,

Ainda por certo no ventre maternal,

Por quaisquer movimentos impensados,

Mas por que há sinais nela grafados,

Que me levou a enrugar esses grafismos?

Quem diga há que os destinos são marcados

Por estes riscos no ventre compilados,

Está minha dita nestes grafologismos?

CANÇÃO DE ARGILA IV

Mas além do crescente e dessa estrela,

Trago na palma também ponto de cruz,

Qual sendo marca deixada por Jesus

Ou tão somente por costureira bela,

Essa Parca que meu fio da vida vela,

Mas não escolhe o momento que conduz

Ao encerramento que seu tear reduz,

Porém sua irmã, a portadora da sovela.

E significa algo o tupido rendilhado

Que me preenche a raiz do polegar,

Qual proteção da eminência do tenar?

Talvez tudo o mais aqui negado,

Quase lisa a eminência hipotenar

Da longa vida a que me veja condenado.

CANÇÃO DE TECLADO I – 6 FEV 23

Já vi afirmarem os ortopedistas

Que quem usa demais o monitor

Para acessar qualquer computador,

Se quiser evitar seus embaraços

Manter deverá quando a trabalho,

Sempre cobertos os seus antebraços.

Médicos também ouvi dizer até,

Em sua hipocrática sabedoria,

Que o trabalhador até mesmo poderia

Ficar sentado com o peito de fora,

Mas insistir em cobrir os antebraços,

Distensão evitando a cada hora.

De fato eu mesmo repeti os conselhos,

Fidelidade tendo à mesma linha,

Para outro qualquer que me avizinha,

Mas quando chega a mágoa do calor,

Sequer eu aguento esse tirão,

Desnudo os antebraços no labor!...

CANÇÃO DE TECLADO II

Também ouvi afirmarem os cientistas

Que sempre é importante suspender

Esse trabalho antes que possa ofender

A própria espinha que percorre meu dorsal,

Ou que meus joelhos sofrerão de tal esforço,

Longamente nessa dobra inatural.

Que do pescoço também a articulação

Ser poderá afetada claramente,

Um torcicolo então se faz presente,

Que até ao ombro bursite poderá

Trazer e assim minar sua energia,

Enquanto a força muscular ofenderá.

Eu descurei contudo dos avisos

E trabalhei aqui anos a fio,

Sem ser por precisão, por puro brio,

E o resultado previsto já encontrei

Por esses dias de até dezoito horas

E as consequências esperadas amarguei.

CANÇÃO DE TECLADO III

Porém de tudo isso o mais que sinto

É o resultado do esforço de meu braço,

Na redação sem fim de cada traço,

Dia após dia, por esta minha espada,

Sem fio, porém com sua aguda ponta,

Tanta palavra sem sentido a ser grafada.

São tais períodos de constância diuturna,

Movida em força superior a mim,

Quem me forçaria a repetir assim,

A repetir constantemente outro rascunho,

Sem me dispor diretamente a digitar,

Diverso esforço a me exigir do punho?

Assim há décadas tenho desgastado

Este meu corpo que nasceu robusto,

Mas que maltratei ao próprio custo

E mesmo agora, quase com oitenta,

Conservo ainda igual temeridade,

Sujeito à musa que nunca se contenta.