O MONGE E A SERPENTE

O MONGE E A SERPENTE

prólogo

Contam que quando andava pela Terra

O iluminado espírito de Buda

Vivia em penitência surda e muda

Um monge seu ferido pela guerra.

Acolhido por Buda, mais se aferra

À sã meditação, com que se escuda

A alma necessitada mais de ajuda,

Visto que grande angústia em si encerra.

Aquele monge à paz se disciplina,

De sorte que mais nada o encoleriza,

Mesmo se tudo em volta desatina.

Assim, quer na tormenta; quer na brisa,

Segue impassível sua dura sina,

Que a entonação de mantras ameniza.

* * *

o carma

Na guerra, conduzira ele elefantes

Contra inimigos vindos de bem longe.

Nada, porém, de que ele se lisonje,

Atormentando-o em todos os instantes.

Ferido após barbáries excruciantes,

Decide, mudo e só, fazer-se monge...

A fim-de que da guerra mais se alonje

E o coração da sua vida d'antes.

À espera da impossível redenção,

Procura compensar sua violência

Com uma radical resolução:

— "Enquanto eu respirar n'essa existência,

Nada mais morrerá por minha mão

A ter de novo limpa a consciência."

* * *

o encontro

'Pós anos de silêncio e solidão,

Aquela alma culpada e penitente

Eis que encontra uma filha de serpente

Totalmente indefesa pelo chão.

De tão fraca, ele a pega com a mão

Quedando quase inerte simplesmente.

Co'os olhos em seus olhos, frente a frente,

Sem que esboçasse mínima reacção.

O monge a colocou em sua cesta

E a carregou consigo para fora

Da sempre tão quente e úmida floresta.

Já no mosteiro, a todos apavora

Como se enfim tivesse má a testa,

Tal risco que corriam àquela hora.

* * *

o concílio

Buda, que às boas almas conhecia,

Pede a palavra ao povo alvoraçado:

— "Amigos, escutai cá do meu lado!

É necessário mais sabedoria..."

"Deixai-o co'a serpente noite e dia

Até que por fim todo o seu cuidado

Mostre-nos a que fora destinado

Isto o que só loucura parecia."

— "Ouço e obedeço." — disse-lhe um por um.

Assim o monge pôde co'a serpente

Viver este viver tão incomum.

De resto, vivia ele tão-somente

Como se fosse sem perigo algum

Aquela realidade surpreendente.

* * *

a ophiophagus

Pelas selvas dos Gates Orientais

Já na estação das chuvas das monções,

Cobras que comem cobras são vilões

D'estas tórridas terras tropicais.

Deveras, as imensas cobras reais

S'elevam tão ferozes quanto leões

E inoculam peçonha aos borbotões

Sobre maiores e mais fortes rivais.

Espécie tão feroz, antes que nasça,

Seja logo da mãe abandonada

A não fazer dos filhos sua caça.

Serpente... Mesmo assim fora adoptada

Pelo silente monge cuja graça

Acreditara ser por ela dada...

* * *

a iluminação

Dia após dia, o monge em seu cuidado

Alimentava a cobra presa ao cesto,

Trazendo camundongos que, de resto,

Ninguém mais parecia achar errado.

Tinha fé que co'o tempo do seu lado

Perderia ela instinto tão molesto

A ponto de entender do monge o gesto

E ter o seu furor pacificado.

Julgava que seria agradecida

Ao ser tratada com suma bondade

Ao longo já de toda a sua vida.

Porém, se aproximava da verdade,

Por uma estrada então desconhecida,

Cercado de total perplexidade...

* * *

o nirvana

Grande demais p'ro cesto onde vivia,

A serpente s'eleva toda ereta.

Bem diante d'ela o monge jaz, asceta,

A lhe encarar nos olhos todavia.

Ameaçadoramente bela e esguia,

Eis que prepara o bote por repleta

D'uma violência própria já inquieta,

A contrastar co'a paz que oferecia:

N'um átimo, ela voa em seu pescoço...

E crava as suas presas já tristonha

Por aquele que mata 'inda tão moço.

Após, ela inocula-lhe a peçonha,

Que súbito da morte lhe abre o fosso,

Adormecendo feito alguém que sonha.

* * *

o darma

Procuraram o Buda entristecidos

Seus discípulos mais a má serpente.

E pretendiam matá-la simplesmente

Depois dos factos já acontecidos.

Que, embora fossem bem esclarecidos

Sobre o valor de todo ser senciente,

Bradavam por justiça, mas somente

Buscavam a vingança dos perdidos.

E Buda disse: — "Leva para a mata

A cobra ainda viva, com certeza!"

Mas os monges: — "Jamais! É uma ingrata!!!"

Pagou tanta bondade com torpeza..."

E Buda: "Só segue ela a Lei inata:

Agiu conforme sua natureza.

* * *

epílogo

"Estamos todos — Buda diz — sujeitos

À lei do Darma — isto é, Lei Natural.

Tanto um humano quanto um animal

Vive segundo seus sábios preceitos."

"E ainda que dotados de direitos,

Seres sencientes somos afinal.

A luz está em ver o próprio mal

Para então renunciar a seus malfeitos."

"Pois, mais que da serpente essa maldade

— Na qual vedes traiçoeira ingratidão —

Havia sim desejo à liberdade!"

"Aos olhos da serpente, era prisão

E os cuidados no monge — a tal bondade —

A mais só e absoluta reclusão."

Betim - 20 02 2002