CONFLAGRAÇÃO / FLOR DE FEL

CONFLAGRAÇÃO I -- 20 NOV 2017

Guardei minha infância até os quarenta e cinco,

empacotada com as coisas de meu tio

e mais as de um avô, fio após fio,

do tempo antigo no qual já não mais brinco.

E embora as conservasse com afinco,

as coleções reunidas por meu brio,

selos e livros, poemas em que esquio,

vi tudo destruído em um só vinco...

Pois minha casa foi queimada num incêndio

e tudo se esfumou num só relance,

tudo quando se reunira lentamente...

Foi-se minha infância, perdeu-se o estipêndio,

sumiu-se o quanto estivera a meu alcance,

sem qualquer explicação até o presente...

CONFLAGRAÇÃO II

Claro está que imaginei haver motivo;

naquela casa poderia ter morrido;

com um pontapé um trinco foi partido,

entrando o ar para deixar-me redivivo;

se me deixasse do sufocar ao crivo,

quanto poema não seria redigido!

Porém do incêndio precisava ser nutrido

meu estro poético, qual me foi já sugerido?

Versos fazia já antes com frequência;

milhares deles, de fato, se queimaram,

provavelmente por razão aleatória;

não foi por isso então essa pendência;

por que então quatro décadas marcharam:

seria preciso dar-me à vida moratória?...

CONFLAGRAÇÃO III

Seria uma forma de obter-me a liberdade?

Perdido assim o peso da bagagem,

para que tudo retomasse com coragem,

vida diversa refazendo em integridade?

Seria um castigo por qualquer maldade,

uma expulsão para melhor pastagem;

despejo apenas da velha estalagem,

quiçá lição apenas de humildade...?

Quase três décadas hoje transcorridas,

não vejo em nada um prêmio ou punição:

só um fogo houve e queimou-me a vida antiga;

tarde ou mais cedo queimarão todas as vidas,

sem que haja acaso, destino e nem razão,

sem que um motivo se desvendar consiga.

FLOR DE FEL I -- 21 NOV 17

Recordo ainda a doçura do teu beijo

perdido em escaninhos do passado,

o longo beijo, por tanto antegozado

e fruído, afinal, num só ensejo...

O beijo antigo que ainda mais almejo

recuperar pudesse e ter-te ao lado,

redisponível em novo instante revelado,

que de outra vez concretizasse meu desejo.

Mas não parece que haja a menor chance,

nossos caminhos estão desentrelaçados,

cada um de nós localizando seu farnel.

Queria ainda conservar a meu alcance

esses teus lábios que nos meus foram selados,

naquele beijo de que recordo o suave mel.

FLOR DE FEL II

Nada mais doce que o beijo recordado,

ósculo impuro mais fruído integralmente,

depois de espera longa e inconsequente,

porém sem ser de uma só vez reconquistado.

Se fosse o beijo repetido em seu pecado,

talvez se desbotasse o dom premente,

de experimentado se tornasse indiferente,

perdido o zelo, mesmo até abominado...

Isso ocorreu já tanta vez entre os amantes

e mais ainda em longos casamentos;

não é que se despreze o recebido,

mas suas facetas já não são dilacerantes,

em casulos já se envolvem sentimentos,

ao ter certeza de outro beijo garantido.

FLOR DE FEL III

Mas esse beijo que tanto se esperou

e que um vez tão somente foi real,

transitório e fugaz em carnaval,

com serpentina e confete se lançou.

Como esquecer o que, enfim, se confirmou,

ao se mostrar perfeito e natural,

um beijo claro, concreto, dom carnal,

foi mais e menos do que a mente imaginou.

Tantos beijos me chegaram no depois,

bocas amargas e doces, desiguais,

beijos obscuros e orgasmos cintilantes;

mas só aquele foi o beijo de nós dois,

tão transitório nessas horas eternais,

sem nenhum outro aguardar-se como dantes!