CONTRASTES / UMA LEITURA INTERPRETATIVA

ASPECTOS DO CONTEÚDO SEMÂNTICO

Resumo de toda a narrativa, através da repetição dos versos, no décimo quinto soneto, o poeta volta ao seu instante, ao momento inicial, ao antes, ao: “dois mundos” opostos: o interior e o exterior fisicamente ( o eu que é visto pelos outros no plano físico, o eu que observa e analisa a realidade); o exterior e o interior, pessoalmente ( o eu que o mundo vê, exterior, e o eu que o mundo não vê, interior).

Por analogia, podemos dizer que o mundo interior, pessoal (aquele em que o Poeta está no lugar e na situação que deseja, aquela que é completa e onde ele pode ser contemplativo e expressar-se amorosamente) e o mundo interior do “Eu” (aquele que é a própria essência do Poeta, sua alma, suas necessidades mais profundas, suas revelações mais excelsas e grandiosas – a visão do macro e do microcosmo como “contraste e semelhança em dose igual,”- sua visão de ser e de viver) são incompreendidos e ameaçados pelo mundo exterior nos níveis físico e anímico, tanto pelos fatos, como pelas pessoas; algo precioso para o poeta pode ter sido destruído pela “mão do homem, a destruição” levando a que os “contrastes em perfeita harmonia” sejam apenas “presentes na memória, nada mais.”

O primeiro soneto traz uma densidade de significados, com concentração de palavras polissêmicas, ambíguas. Isso também ocorre nas disposições mais gerais, a escolha do tema e do formato.
O mundo significa “ a terra e os astros” e “tudo que aí existe”, em sentido literal; significa “a sociedade”, “classe social”, “um ambiente preferido, um universo”, um “conjunto de coisas importantes e complexas” e ainda como adjetivo, conteúdo implícito, limpo, puro (mundo é antônimo de imundo), em sentido figurado.

Estonteante, tanto pode significar algo que “atordoa, perturba, entontece”, como algo que ”faz perder o tino, deixa deslumbrado, maravilhado”.

Vibrante, é “aquilo que faz soar, que tem som claro e distinto”; mas é também aquilo que “desloca, move, comove, abala”.

Quente, por sua vez, é “o que transmite calor, vida, cordialidade, sensualidade, voluptuosidade” e também “o que é verdadeiro, oferece fé, o aproximar-se de uma verdade” (por extensão).

Céu, além de ser “o espaço acima de nossas cabeças”, é também figuradamente, “o paraíso; qualquer lugar onde se possa ser feliz; o que está à vista”.

É em torno da polissemia desses vocábulos e daqueles já enunciados de início (o título, “Contrastes” e o formato “coroa”) que o poeta tece sua trama, a grande metáfora sobre o Mundo, sobre os dois mundos, o mundo real e o mundo metafórico.

Vale retomar aqui, a idéia inicial:

Este “rosário”, esta “coroa” refere-se ao mundo; aos mundos. Mundos que se opõem; em que o Poeta experimenta e avalia o valor de cada um. É o mundo em que o Poeta tem sua vida material, que ele tenta radiografar; é o mundo onde ele existe e vivencia um mundo interior que não pode ser radiografado.

Esses sonetos, embora rimados e metrificados, apresentam uma relativa liberdade na composição. A essa liberdade, opõe-se o fato de que os sonetos são todos construídos sem o uso de verbos (conjugados, flexionados nas formas pessoais). Essa injunção, imposta à construção, é uma limitação.

“Contrastes” é uma composição refinada e de difícil elaboração, um verdadeiro “ato heróico”, contrastando com uma forma que indica ausência de ação (sem verbos), uma paralisação, uma cristalização da posição do herói, numa prisão formal, apenas atenuada pela liberdade das rimas; indicação talvez de uma “pequena abertura” ou do recurso de um arrimo (apoio, socorro)”. “Coroa”, que também pode ser “rosário” liga-se à prece (que nos socorre ou através da qual pedimos socorro)

O texto é complexo e estilisticamente bem elaborado, mas dois recursos destacam-se sobremaneira:

A utilização da elipse, recurso que produz um efeito notável, apreciável e, neste caso, imprescindível.

Ao utilizar o recurso da elipse (e do texto virgulado, com menor número de pausas longas) o Poeta descreve “os ambientes e os estados de alma” sem que tenhamos a sensação de que falta algo, de que falta a ação.

A utilização da metáfora, recurso que vai reforçando e adensando o conteúdo semântico, conduzindo ao símbolo e ao paradoxo.

Segundo WELLEK (p. 233) “metro e metáfora andam juntos e imagem, metáfora, símbolo e mito representam a convergência importante de duas linhas, ambas importantes para o estudo da poesia.” Ele também apresenta um estudo geral sobre as imagens metafóricas, feito por Henry Wells, onde ele “envida construir uma tipologia
das mesmas de uma forma descritiva, ressaltando três tipos de imagens:

“ A imagem intensificadora (...) clara e nítida (...) diminutiva e diagramática (...) “A estas metáforas se chama com mais freqüência do que às outras, emblemas ou símbolos”.

“As três categorias superiores são: a imagem sumida (não é evidente como imagem): a radical (raiz na realidade) e a expansiva (intensificadora).”

“Os denominadores comuns (...) seu caráter especificamente literário (sua recalcitrância à visualização pictórica); sua interioridade (pensamento metafórico); interpenetração de seus termos (seu casamento profundo e procriador).” (WELLEK, pp. 252,253,254,255).

A aplicação desses tipos de imagem presta-se de forma ímpar à nossa análise, ao tipo de poema que estamos analisando, por isso a estamos utilizando.

Ali estão: “o amor, um mundo inteiro de emoções,” e “o mundo a minha volta, mau, cruel.”.


Esse “Mundo” desdobra-se pela metáfora em: mundos interiores e exteriores, considerando o microscópico e o macroscópico; o microcosmo e o macrocosmo; o humano e o estelar; as forças reprodutoras humanas e as forças reprodutoras cósmicas; e também o amor e o ódio, a guerra e a paz; a ação do Criador e a ação do homem, todos eles fatos e forças em oposição, contrastes.

Com relação ao uso das figuras de linguagem,já que a elipse presta-se para anotações como as “de um caderno de notas”, de “um diário íntimo”, “Contrastes” poderia ser entendido como o resultado das notas de um poeta, ao longo de um determinado período de tempo, que depois se transformaram em versos; pode ser entendido como as anotações sobre um “determinado estado de alma”, num dado momento, com a mesma conclusão. A utilização da metáfora envolve cada verso numa ambiência imagética e conduz toda a narrativa aos planos do simbólico e do paradoxal.

Não há como deixar de mencionar a possível relação com o mítico Ovo Filosófico “o grão, o ovo cósmico, o botão,” e com a Alquimia, nos três aspectos da edificação (madeira) “do chão ao céu, formoso vegetal”; agricultura (terra e água) “as terras desoladas, sem um grão”, “o murmúrio do mar, sons de gaivotas” , “sem pão para alimento, sem guarida”; e metalurgia (fogo e ar) “ruídos dissonantes de metais”, “um céu azul com fortes vendavais”e nos seis aspectos da Grande Obra, para os chineses simbolizados nas seis atitudes do dragão: escondido / putrefação; nos campos / fermentação; visível / coagulação; saltador / solução; voador / destilação; planador / sublimação.

Nas passagens pelos mundos, subidas e descidas, a figura da serpente “serpentes em nervosa atividade” (relacionadas com o dragão citado).

“ A serpente, ancestral mítico e civilizador, é um símbolo universal. Brota da sombra como o relâmpago e representa a ambivalência de toda manifestação.É maléfica sob a aparência de Tifon e de Píton,mas representa também a sabedoria, como indica seu nome grego ophis, anagrama por uma letra de sophia. Reúne as duas correntes ascendente e descendente da força universal.” (Benoist, L. (1976). SIGNOS SÍMBOLOS E MITOS. M .G. Interlivros p.72).

Tanto quanto nos outros aspectos, são pinceladas, pequenas setas a indicar possíveis caminhos a quem quiser se aprofundar ainda mais na análise. De nossa parte, queremos apenas apontar a progressão da narrativa que atinge o símbolo e toca o mítico.


Metro, Rima, Aliterações, Elipse e Metáfora, recursos entrelaçados, nos colocam diante do mundo paradoxal que o Poeta vislumbrou; dos mundos interiores e exteriores, o microscópico e o macroscópico; o microcosmo e o macrocosmo; o humano (do Poeta) e o estelar. E ele os coloca diante de nós como aquele ovo que os chineses costumam esculpir em marfim: cada qual dentro do outro perfeitamente desenhado, independente, porém relacionado, do maior ao menor, sem que sequer vejamos ou saibamos algo claro do menor que lá está, mas sabendo que existe lá dentro; ou como as “matrioskas”, bonecas russas de madeira pintada, montadas uma dentro da outra; ou como os ovos Fabergé; ou como...



(Análise da Coroa de Sonetos de Paulo Camelo: Contrastes/ continuação)