CONTRASTES / UMA LEITURA INTERPRETATIVA

ALGUMAS FIGURAS  (1)

Vamos analisar, inicialmente soneto por soneto, quanto ao tema, destacando algumas Figuras utilizadas, ao mesmo tempo em que esmiuçamos as significações do vocabulário, com vistas a explorar o conteúdo semântico (e algumas possibilidades de interpretação).

CONTRASTES

I

“O mundo em minha volta, estonteante,
vibrante, quente, bruto, mau, cruel;
no céu, no alto, estrelas luzidias,
os dias calmos, lindos fascinantes.

Na calma do meu mundo interior,
o amor, um mundo inteiro de emoções,
paixões ardentes, um furor profundo,
no fundo de minh’alma, muito amor.

Contrastes entre forma e pensamento,
momentos de leveza e de furor,
de dor, paixão amor, inferno e céu;

contrastes de dois mundos, duas vidas:
a vida interior, amor profundo;
o mundo em minha volta, mau, cruel.”

Figuras:

Hipérbole (linguagem): “o amor, um mundo inteiro...”

Prosopopéia (retórica): “mundo mau”; “mundo cruel”; “dias fascinantes”; “paixões ardentes”; “furor profundo”; “fundo da alma”...


O mundo terreno é “quente, bruto, mau, cruel,” ; o mundo celeste é “estrelado” e oferece dias “calmos, lindos, fascinantes.”

O mundo do Poeta em seu interior é de “amor, de emoções, de paixões ardentes,”; o mundo do Poeta em seu exterior é : “o mundo em minha volta, mau, cruel.”

II

“O mundo em minha volta, mau, cruel,
Babel, com tantas vozes dissonantes,
distantes, frias, de amor carentes,
correntes com seus elos de papel.

As guerras, frias, torpes, tristes guerras,
as terras desoladas, sem um grão,
o chão sem vida, a vida sem paz,
e mais desolação por essas terras.

Um mundo de contrastes, divergente,
carente de amor, de paz, de pão,
razão de tanta intriga, tanto mal;

um palco de tragédias, de intrigas,
de brigas, lutas, de furor profundo,
um mundo tão difícil, tão real.”

Figuras:

Antítese (estilo): “carente de amor, de paz, de pão,
razão de tanta intriga, tanto mal”

Metáfora (de linguagem ou de pensamento): “Babel”; “carente de pão”; “sem grão”;(mundo)” palco de tragédias...”(Símbolo)

Prosopopéia (retórica): “vozes frias”; “guerras frias”; “terras desoladas”...

Reiteração (linguagem): “um palco de tragédias de intrigas,
de brigas, lutas, de furor profundo,
um mundo tão difícil, tão real.”

Sinonímia (linguagem): “mundo de contrastes, divergente,”


O mundo exterior, à volta do Poeta é mau, cruel, habitado por seres que não permitem a comunicação: “Babel com tantas vozes dissonantes,” , o entendimento pois são “distantes, frias,” sem amor, falsamente aprisionadas: “elos de papel”. Correntes também significa “vulgar, comum” “pessoa agrupadas em torno de um determinado tipo de idéias”. Dessa forma a frase “correntes com seus elos de papel” poderia ser entendida como referência a seres comuns, vulgares que seguem a corrente sem saber porque; crêem-se ou sentem-se ligadas a tendências e opiniões sem fundamento (elos de papel) quer das motivações das correntes, quer dos seus motivos (a frase é bastante ambígua).Esse é um mundo sem alimento, sem vida, sem paz, um mundo que não nutre nem fisicamente, nem emocionalmente: “carente de amor, de paz, de pão,” ; o mundo real é um mundo de tragédias, de intrigas, de brigas, lutas.

III

“Um mundo tão difícil, tão real,
tão mau, cruel, tão desanimador,
e o amor, no mundo, forte, combativo,
altivo em sua luta contra o mal,

sem lança, sem espada, sem canhão
perdão por arma, vida como lema,
por tema a caridade, o bem, a paz,
capaz de sacrifício e doação.

Contraste entre forças dissonantes,
distantes, antagônicas, rivais,
reais e opostas, forças conflitantes:

o mundo de terror, força do mal,
brutal, cruel, contrário a outro mundo,
profundo sentimento dos amantes.”

Figuras:

Antítese (estilo): “Um mundo tão difícil, tão real,
tão mau cruel, tão desanimador;
e o amor, no mundo, forte, combativo,
altivo em sua luta contra o mal,”

“ mundo de terror, força do mal,
brutal, cruel, contrário a outro mundo
profundo sentimento dos amantes.”

Metáfora (linguagem ou pensamento): “perdão por arma” (Símbolo)
“vida como lema”
“por tema a caridade”

Prosopopéia (retórica): “amor altivo”....

Reiteração: “um mundo tão difícil, tão real,
tão mau, cruel, tão desanimador,”

“ sem lança, sem espada, sem canhão”

“ por tema a caridade, o bem a paz,”

“ brutal, cruel, contrário a outro mundo”


O que está no mundo (o Poeta?) é “forte e combativo, altivo em sua luta contra o mal.”, usando sentimentos nobres, valorizando a vida, “tendo como lema o perdão, a caridade, o bem, a paz, o sacrifício, a doação.” E mais uma vez o Poeta define dois mundos contrastantes.

IV

“Profundo sentimento dos amantes,
vibrantes em seu leito de paixão,
em tão suave gesto de pureza,
beleza de prazer inebriante.

Que força! Que mistério! Que ternura!
Que pura sensação! Que sentimento!
Momento de paixão: amor profundo!
Oh, mundo de prazeres! Oh, doçura!

Mistério e força, aura e furacão,
o pão da alma, condutor da vida,
guarida e fortaleza dos amantes

no mundo de contrastes, mundo cão;
razão de vida e força dos viventes
carentes de paixão, tristes, distantes.”

Figuras:

Prosopopéia (retórica): “suave gesto de pureza”; “mundo cão”

Metáfora (linguagem ou pensamento): “leito de paixão”; “pão da alma”... (Símbolo)

Sinestesia (figura de linguagem): “beleza de prazer inebriante.”
“Que força! Que mistério! Que ternura!
Que pura sensação! Que sentimento!”

“Oh, mundo de prazeres! Oh, doçura!”

“Mistério e força, aura e furacão,”


O Poeta começa a adentrar-se pelo e a descrever o mundo interior; o mundo onde está o “sentimento dos amantes”, o mundo onde existe o amor. Esse mundo é “mundo de prazeres”, “doçura”, “Mistério e força, aura e furacão, / o pão da alma, condutor da vida,” e nesse mundo ele retoma as avaliações. O mundo interior existe “num palco sem platéia, arredio.” ; ele está “afastado do convívio social”; é “afastado, apartado, desgarrado.” Situa-se longe dos lugares normalmente freqüentados.

V

“Carentes de paixão, tristes, distantes,
semblantes de beleza sem igual,
sem mal, sem ódio, divinal pureza,
leveza nas ações, traços marcantes,

vibrantes corpos de facetas mil,
humildes, orgulhosos, tentadores,
atores de uma peça sem final
num palco sem platéia, arredio.

Um mundo de contrastes multicores,
valores diferentes, desiguais,
vitrais formosos, lindos reluzentes

num pórtico sem graça, sem valor,
sem cores, estarrecedor, imundo,
um mundo de matizes diferentes.”

Figuras:

Antítese (estilo): “vibrantes corpos de facetas mil,
humildes, orgulhosos, tentadores”

Prosopopéia (retórica) “corpos de facetas mil”, “vitrais formosos”

Reiteração (retórica) “sem mal, sem ódio, divinal pureza”
“leveza nas ações, traços marcantes,”

“ valores diferentes, desiguais,”

“num pórtico sem graça, sem valor;
sem cores, estarrecedor, imundo,”

(Recurso reforçado pela presença no estrato fônico de uma alteração no ritmo do poema, colocando atenção sobre um conteúdo semântico importante, em oposição com o segundo verso do primeiro terceto do soneto VI).


Nesse mundo, o Poeta avalia, faz considerações sobre o mundo daqueles que não têm ou não sentem o mesmo amor. Através da imagem do vitral faz comparação do ponto de vista da beleza e riqueza da experiência (vitral iluminado, visto contra a luz) e a ausência de significado de um vitral não iluminado. Até um vitral sujo, contra a luz pode ser belo, mas se não houver luz a pureza das cores vibrantes que geralmente contém um vitral, não criará nenhuma beleza.

VI

“Um mundo de matizes diferentes,
de entristecedores coloridos,
ruídos dissonantes de metais
nas mais devastadoras das tormentas;

serpentes em nervosa atividade
com a disritmia de seus seres
de merecida vida rastejante
diante da maior velocidade

das aves, voadoras criaturas,
figuras de celestial beleza
em desanuviantes madrigais,

nos cantos tristes, lindos, maviosos,
formosos seres de belas plumagens,
imagens de contrastes abissais.”

Figuras:

Prosopopéia (retórica): “entristecedores coloridos”;” nervosa atividade”; “desanuviantes, madrigais”

Esse mesmo tipo de visão perpassa o sexto soneto e a primeira estrofe do sétimo. Há uma comparação entre peso e leveza, entre as criaturas “de merecida vida rastejante” e as “figuras de celestial beleza” entre o lento grosseiro e vil e o ágil, leve, angelical (formosos seres de belas plumagens). No segundo verso do primeiro terceto há novamente a utilização de um recurso do estrato fônico, a alteração do ritmo do poema, fazendo recair a atenção sobre esse verso, que forma uma antítese com o segundo verso do segundo terceto do soneto V.

VII

“Imagens de contrastes abissais,
a paz e a guerra, o mal e o bem, o amor
e a dor, presentes num mesmo painel
de um céu azul com fortes vendavais,

canais de transferência de energia
e via de transporte dos gametas
em metastática fusão de vidas
contidas, em profunda letargia.

E dentro de um diminuto grão,
do chão ao céu frondoso vegetal,
um alto e majestoso monumento,

formosa flor, com pequeninos frutos,
redutos de semente de herança,
na dança viva, ao sabor do vento.”

Figuras:

Antítese (estilo): “a paz e a guerra, o mal e o bem, o amor
e a dor, presentes num mesmo painel
de um céu azul, com fortes vendavais,”

Sinestesia . Imagem Radical /Wellek (linguagem): “canais de transferência de energia
e via de transporte dos gametas
em metastática fusão de vidas
contidas em profunda letargia”

Metáfora (linguagem) “formosa flor, com pequeninos frutos, (Símbolo)
redutos de semente de herança”

“na dança viva ao sabor do vento” (Símbolo)

Prosopopéia (retórica): “painel de um céu azul” (imagem dentro da imagem)


Da segunda estrofe deste soneto em diante, o Poeta começa a falar da vida, da incipiente geração da vida. Da vida potencial que vem através dos “canais de transferência de energia / e via de transporte dos gametas (os dutos seminais) para encontrar a formosa flor com pequeninos frutos, / redutos de sementes de herança” / ( o óvulo, liberado pelo ovário) o “diminuto grão”.


(Análise da Coroa de Sonetos de Paulo Camelo: Contrastes/ continuação)