A antropofagia de Oswald de Andrade.

Matheus Marques Nunes.

Ler Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade, escrito no ano de 1928 e publicado em 1933, ainda hoje causa uma sensação de choque. Em primeiro lugar, pela intenção modernista de colocar em xeque a idéia tradicional de literatura e, principalmente, por sua utopia devoradora. O ideal da antropofagia não apenas questiona a condição do homem moderno, preso nas amarras do pensamento utilitário, mas, possibilita uma reflexão atual sobre o significado da liberdade na sociedade burguesa deste século.

A premissa fundamental para nossa análise e que iremos considerar inicialmente é a inovadora experiência estilística contida no romance. O rompimento com todo o passado literário surge, desde a primeira página, fustigando o leitor. Questiona-se a nossa submissão, o nosso aprisionamento na rotina e a falta de discernimento diante das inovações. Alterando as relações, códigos e apresentações “normais” da obra literária, o conhecido é transformado em algo estranho; com isso, criam-se as condições necessárias para a crítica e o conhecimento da nossa realidade, limites e possibilidades.

Várias destas inovações, como a elaboração de uma linguagem incisiva centrada na sátira social ou a abolição das fronteiras entre poesia e prosa, foram experimentadas na obra Memórias Sentimentais de João Miramar (1924). A desarticulação da forma tradicional do romance, realizada no Serafim, aconteceu graças ao “acervo estilístico” criado anteriormente.

Dessa forma, estabelecer paralelos, continuações e rupturas entre Miramar e Serafim, o par constituinte da segunda fase da obra de ficção oswaldiana , significa, para os propósitos deste estudo, alcançar uma melhor definição dos aspectos velados compreendidos na segunda obra.

Uma primeira distinção que devemos considerar refere-se à maneira como o tempo é trabalhado nos dois romances. Memórias Sentimentais, não obstante o seu caráter “fragmentário”, seus elementos “estilhaçados” e seus capítulos “pulverizados”, mantêm certa ordem cronológica que permite uma leitura linear do enredo . Por outro lado, Serafim, com seu retorno a uma espécie de narrativa mítica, contesta todo o encadeamento temporal considerado “lógico”.

Miramar carrega como sua principal contribuição estilística uma inovação na sintaxe da escritura e na disposição de palavras e frases. As orações, como numa tela cubista, são transformadas em fragmentos e dispostas de maneira inusitada. Essa aparente desarticulação encobre, no entanto, uma nova composição dos elementos. Já no Serafim, a (des) articulação iconoclasta, ocorre em um nível mais geral. O resultado é uma composição que, sorvendo pequenas doses de diversos estilos, estilhaça toda a ordem da prosa convencional.

A colagem, outra técnica da vanguarda européia deglutida pelo autor, possibilitou que o arranjo dos materiais poéticos assumisse o caráter de um exercício paródico. As funções iniciais dos elementos são manipuladas e justapostas criticamente. Nesse novo cenário tudo adquire um significado diferente do original. O contexto provinciano é visualizado com maior nitidez e o comportamento banal e tacanho da burguesia pode, assim, ser destruído, ironicamente, pelo artista.

Todavia, a força deste romance, como defende Haroldo de Campos e reconhece Antônio Cândido em uma análise posterior , advém, justamente, de sua “técnica de citações”. O escritor, tecendo a junção criativa de trechos independentes, que poderiam perfeitamente constituir outros livros, acaba elaborando uma espécie de antilivro que desafia os procedimentos tradicionais da construção narrativa.

Feitas estas rápidas e necessárias considerações, sobre algumas influências da estética modernista em Oswald de Andrade, analisaremos, em seguida, mais detidamente, a obra Serafim Ponte Grande.

PRIMEIRA LEITURA

Não encontraremos no Serafim Ponte Grande os usuais capítulos que dividem os romances. Temos aquilo que Haroldo de Campos chamou de “grandes unidades de superfície” . É importante considerarmos que essa primeira divisão é um tanto artificial, uma vez que ela responde ao ritmo exterior do enredo e não propriamente à lógica que orienta os seus acontecimentos.

A primeira destas unidades, Recitativo, faz a apresentação do nosso herói e oferece uma breve indicação da paisagem paulistana: “A paisagem desta capital apodrece”.

Encontramos já na segunda unidade, Alpendre, Serafim no seu primeiro contato com as letras, através do malicioso trecho de uma cartilha escolar; segue-se, outro fragmento que lembra uma composição infantil num tom que mistura, mais uma vez, malícia e poesia; um poema parodia intitulado “Paráfrase de Rostand”; “Da adolescência, ou seja, a idade em que a gente carrega embrulhos” que se dedica à iniciação amorosa do protagonista; outro poema parodia “Propiciação”; e, finalmente, a cena em estilo de teatro bufo, “Vacina Obrigatória”, nela, Serafim, “Brasileiro. Professor de ginástica e geografia. Nas horas vagas, sétimo escriturário.”, encontra-se na delegacia, diante da autoridade de “cara arguta das 23 horas”, constrangido pelos pais de Lalá a reparar o erro que colocou em risco a honra da filha. A situação da jovem, atirada no “viaduto do escândalo”, após ser flagrada por sua mãe numa comprometedora lição de geografia / ginástica com o professor Serafim, funciona como paradigma da moral vigente. A pressão da família, autoridade e demais presentes, resulta no esperado desenlace matrimonial. Prostrado e combalido, frente a grande ofensiva familiar/legalista, o herói capitula. “Serafim gado e séquito” são conduzidos para “debaixo do altar da Imaculada Conceição”.

Folhinha Conjugal, ou seja, Serafim no front, espécie de caricatura de um diário íntimo, é a construção de uma norma que desafia e, ao mesmo tempo, completa o ritmo moral da sociedade brasileira.

Temos, além disso, a apresentação de vários personagens: o Manso da repartição; Benedito Carlindoga, chefe na “escarradeira” (vulgo Repartição Federal de Saneamento); o colega e amigo José Góis Pinto Caçuldo; Pombinho (Pery Astiages), um dos filhos do nosso herói; comendador Sales; Birimba, também da repartição; o “jovem escritor” Pires de Melo, entre outros. Todos participantes da rotina burguesa, uma mescla de tragédia conjugal, conversas com os amigos, aspirações beletristas (“ando com vontade de escrever um romance naturalista que anda muito em moda”) e outros fatos corriqueiros, do marido e funcionário público Serafim Ponte Grande.

O diário finaliza-se com o apêndice “O terremoto Doroteu”. A “grande e formosa artista”, “flexão loira, boca onde mora a poesia”, deixa Serafim extasiado: “Dorotéia é o meu Etna em flor!”. No entanto, seu inflamado ímpeto esbarra na “muralha chinesa da família e da sociedade”.

Seu idílio amoroso é destruído quando Dorotéia declara “cinicamente” amar Birimba. Eles fogem para o Rio, onde irão atuar no filme “Amor e Patriotismo”, levando Serafim ao desespero: “Eu hurro de dor, pensando que uma objetiva vai enlameá-la definitivamente ao lado de um cáften!”.

O vaticínio serafínico acaba se confirmando. A consagração artística de sua amante é estampada na manchete de um jornal sensacionalista chamado “Maçã Descascada”: “O pau duro dos trópicos não respeita estrela!”.

Enfim, o desiludido herói encerra sua malfadada aventura: “Acabou-se em fumaça a grande mulher que entrevi nos dias em que me fiz amar. Souvent femme varie, já dizia Victor Hugo, autoridade na matéria!” e reconcilia-se com sua esposa.

Compreendemos que toda esta repressão, que vemos perpassar os impulsos do protagonista, submete-se àquilo que Antônio Cândido chamou de dialética da ordem e da desordem . A particularidade de uma ordem que consente e, intimamente, sanciona a transgressão, ou melhor, que está solidamente ligada à desordem, é apreendida, em toda a sua contradição, pela estrutura do romance de Oswald de Andrade.

A quarta unidade Testamento de um legalista de fraque mostra o retrospecto das aventuras de Serafim durante a Revolução de 1924. No cenário de conflagração, longe da família “desaparecida com o Manso da Repartição, numa fordinha preta, na direção da Serra dos Cristais” e do seu diretor Benedito Pereira Carlindoga, ele sente, novamente, a deliciosa sensação de liberdade.

Entretanto, a sensação de “ser o único cidadão livre desta famosa cidade” é garantida, sobretudo, pela posse de um canhão instalado no seu quintal. Somente Pombinho, engajado na guerra, compartilha o segredo bélico do pai.

Serafim coloca-se na condição de símbolo nacional, sofredor da mesma incompetência cósmica que atormenta o país há muito tempo. Tendo um canhão e não sabendo atirar ele reflete sobre o que é preciso, quantas revoluções, para a “reabilitação balística” dos brasileiros.

O aprendizado, no entanto, é imediato. Nosso herói mata o diretor / tirano Carlindoga com “um certeiro tiro de canhão no rabo” e aparentemente faz o mesmo com Pombinho. A morte do chefe adquire um valor representativo de transgressão das normas, pois, o “déspota” da repartição propugnava que a nação somente poderia progredir dentro da ordem. Além disso, Serafim transforma em carta de crédito, a juros altos, o dinheiro deixado pelos revolucionários no quarto do filho. O episódio da fortuna mal adquirida resgata o legado do mundo sem culpa presente nas Memórias de um sargento de milícias.

A unidade IV contém ainda “Noticiário” paráfrase política jornalística sobre o atentado contra Carlindoga; “Abaixo - assinado por alma de Benedito Carlindoga”; “Largo da Sé” ensaio nirvanista que escarnece o discurso de certa subliteratura meditativa com aspirações filosóficas; “Cômputo”, funcionando como um registro de cena e “Intermezzo” mistura de teatro bufo e romance de folhetim.

O modo como o autor utiliza-se deste material artístico, salpicando-o com a linguagem do cotidiano, provoca o “estranhamento do gênero romance.” . Dessa forma, o antropófago/modernista pretendia devorar o legado jesuítico/colonial e livrar-se do manto mofado que revestia nossa língua.

No elemento sedativo é a quinta grande unidade. Trata-se do relato da viagem de Serafim e seu secretário Pinto Caçuldo a bordo do cosmopolita transatlântico chamado Rompe - Nuve. A desfiguração da atmosfera internacional, através do toque caipira do sugestivo nome do navio, completa-se com a epígrafe: “Mundo não tem portera”.

Logo no início da viagem, o herói, diante da ausência de bibliotecas no “paquebot”, reclama ao seu fiel secretário um livro. Pinto Caçuldo, atendendo ao protesto, oferece-lhe um “dicionário de bolso de sua lavra para não confundir nem esquecer as pessoas que conhece ou conheceu”. Porém, ao ler a definição de sua esposa, como “Jovem e carinhosa esposa do meu prezado colega e particular amigo”, Serafim, colérico, atira o glossário no oceano.

Os outros elementos componentes desta unidade são: a história de “Mariquinhas Navegadeira” e as proezas de “Caçuldo”. As aventuras do secretário, narradas no estilo das crônicas medievais e dos romances picarescos, ganham cada vez mais relevo, ameaçando a posição do protagonista e obrigando-o a expulsar seu concorrente do romance. A cena, da disputa pelo lugar de personagem principal, estilhaça, completamente, toda a ilusão e a sensação de distanciamento que acalenta o leitor.

A permanência em Paris de Serafim e as peregrinações pela Europa do nosso herói viajante é o tema de Cérebro, Coração e Pavio. As descrições fragmentadas e cheias de parodias, que caracterizam os episódios dessa unidade, nos remetem, pela sua forma, as peripécias de João Miramar no velho continente.

A sétima unidade, O Meridiano de Greenwich, dá continuidade às aventuras marítimas de Serafim, mas, agora a bordo de outro navio, o Conde Pilhancudo. A narração, que acontece na forma de romance de “Capa e Pistola” (o último termo substituindo maliciosamente “Espada”), possui uma atmosfera de impostura e fidalguia, clima perfeito para Serafim ser transformado no Barão Papalino.

O fidalgo passa a desejar ardorosamente a “morena e moça com boca imobilizada num assento circunflexo e uma sardinha na asa do nariz” chamada Dona Solanja. Ele acaba superando a resistência da triste donzela que, vencida, cede ao seu convite. O feliz casal passeia turisticamente por Nápoles.

Todavia, a efusão amorosa termina numa tragédia. Quando regressavam ao cais, Solanja percebe que uma mulher, “mal vestida e cheirando a alho, com uma garrucha no polegar”, avançava seguida por “um camorrista bigodudo e baixo” em sua direção. Eram Birimba e Dorotéia, que dispara três vezes contra o Barão e sua companheira, sem conseguir acertá-los. A nobre dama passa “rapidamente a mão nas calças do atarantado Serafim”, tira-lhe a pistola e sem hesitar atira seis vezes na adversária e antiga amante do “nobre senhor”. Solanja, depois de fuzilar Dorotéia, é “linchada pelas senhoras da multidão”.

A unidade Os esplendores do Oriente também é construída no estilo “descritivo cubista” do Miramar . Serafim perambula pela Grécia, Turquia, Egito e Palestina, atrás de duas “girls d’hoj’em dia”, misteriosas, lésbicas e disponíveis. Tudo acontece no ritmo de um romance policial, entremeado pelas notas eróticas do diário de uma das “girls”, Caridad - Claridad, nova paixão do incansável herói.

Fim de Serafim fala do seu regresso ao país.

Depois de ameaçar com seu canhão, colocado no alto de um arranha - céu, o “quartel central de polícia romântica de sua terra”, a imprensa colonial e o serviço sanitário, Serafim é descoberto, identificado e cercado. Totalmente acuado, ele esta prestes a cair “nas luvas brancas de seus perseguidores”, quando uma tempestade “se debruça sobre a cidade imprevista”. O herói põe um pára-raios na cabeça e um raio “justiceiro” acerta-o em cheio.

Segue-se a “Pregação e disputa do natural das Américas aos sobrenaturais de todos os Orientes” e “Chave de ouro” uma panorâmica, na perspectiva Pau - Brasil, da evolução urbana de São Paulo.

Errata, a décima unidade, mostra, com muito sarcasmo, as homenagens póstumas que família e amigos oferecem ao ilustre cidadão Serafim Ponte Grande:

“Senhores e possuidores de fundos e de largos latifúndios, quiseram perpetuar no bronze filantrópico das comemorações, o ex-marido, ex-pai, e ex-amigo. Fizeram construir num arrabalde de Juqueri um Asilo para tratamento da loucura sob suas formas lógicas. E encomendaram a um pintor vindo da Europa uma fotografia a óleo do falecido”(ANDRADE, 1989, p.133.).

Apesar de todos os esforços, o pintor não conseguiu retratar fielmente, segundo a opinião dos familiares, o falecido. Vemos, explicitado novamente de uma maneira extremamente irônica, que definir o facetado homem americano mostrou ser uma tarefa complexa. O simples enquadramento em fórmulas anteriormente consagradas pelo padrão europeu não foi garantia suficiente para a sua perfeita realização. Por isso, o artista, esgotado pelo infrutífero trabalho nos trópicos e “louco como um silogismo”, tornou-se o primeiro hóspede da ala de luxo do manicômio.

Finalmente temos Os Antropófagos, verdadeiro encerramento ou recomeço de tudo. Pinto Caçuldo, inspirado pela memória do estimado companheiro, volta do seu exílio forçado como capitão pirata do navio El Durasmo. A embarcação é concebida como símbolo da utopia antropofágica, da viagem permanente e da “reeducação à maneira de Sade, da virtude pelo vício, num exercício de liberdade total como radical negatividade” .

A tripulação do El Durasmo, definida como “base do humano futuro, uma sociedade anônima de base priápica”, livre de toda a “coação moral da indumentária” e da “falta de imaginação dos povos civilizados”, isola-se do contágio com os portos policiados. Para evitar qualquer reclamação por parte das autoridades, proclamam peste a bordo. E todos, de ceroulas e pijamas, numa simulada quarentena, recusam-se a desembarcar. Tomando carregamentos a crédito prosseguem na interminável viajem, passando em Sidnei, Málaca, ilhas Fidji, pelos mangueirais da Bahia… e somente parando “para comprar abacates nos cais tropicais”.

Portanto, compreendemos que Serafim Ponte Grande comporta diversos enredos. Eles articulam-se numa narrativa básica marcada, sobretudo, pela não linearidade. A ordem vai sendo solapada, a acomodação do elemento transgressor torna-se cada vez mais difícil, até que a ruptura, em termos quase dionisíacos, finalmente acontece.

Mas, se observamos as implicações da irregularidade na forma do romance, resta, ainda, numa leitura diferente, tentar esclarecer como a lógica íntima da sociedade conforma o encadeamento narrativo do livro.

SEGUNDO ESTRATO

Podemos dizer que existe, deixando de lado os inúmeros elementos secundários que aparecem nas grandes unidades superficiais e superando o hiato criado pela fratura do tempo narrativo, uma estrutura mais profunda contida no livro Serafim Ponte Grande. Ela seria representada em dois movimentos marcados pela polarização entre ordem e desordem.

O primeiro movimento abrange as nove primeiras “unidades de superfície”: Recitativo; Alpendre; Folhinha Conjugal; Testamento de um Legalista de Fraque; No Elemento Sedativo; Cérebro, Coração e Pavio; O Meridiano de Grenwich; Os Esplendores do Oriente e Fim de Serafim.

As três primeiras constituem o que podemos chamar de situação inicial, com a apresentação do herói (Recitativo), sua infância, adolescência, emprego público e casamento (Alpendre), e por fim, as desventuras do matrimônio e as peripécias extraconjugais (Folhinha).

No Testamento encontramos a primeira grande altercação da situação estabelecida. Serafim, como dissemos, valendo-se do ambiente de guerra, que conturba a capital paulista, rouba o dinheiro confiado pelas forças rebeldes ao seu filho e mata Carlindoga seu chefe da repartição, denominado de tirano palpável. O ritual semelhante às bacanais, começa a se configurar, o herói/transgressor desfere o primeiro golpe, numa atitude carregada de simbolismo, nas normas da sociedade.

Intermezzo, ainda na quarta unidade, marca o início da fuga de Serafim das sanções esperadas pelo seu ato de rebeldia. A princípio, ele parte de São Paulo para Copacabana, depois (No Elemento Sedativo), prossegue, numa escala internacional, embarcando, com o ex-colega de repartição e atual secretário particular Pinto Caçuldo que, como sabemos será expulso do romance no final desta unidade, no cosmopolita navio “Rompe-Nuve”. No Cérebro, Coração e Pavio, o foragido contestador perambula pela Europa. O Meridiano de Greenwich descreve a viagem no navio Conde Pilhanculo e suas as aventuras napolitanas. O exílio apenas é encerrado com as “peregrinações” pelo Oriente atrás das “girls d’hoje em dia”.

Finalmente, na unidade XI, fechando este primeiro movimento, ocorre a perseguição e a punição do herói transgressor. Todavia, neste ponto, o artista, somente para exemplificarmos um recurso que está presente ao longo de toda a obra, quebra a seqüência temporal “típica”. Desse modo, a cena que havia ficado como que suspensa na unidade IV (Serafim no seu canhão colocado num arranha-céu apresentando-se como candidato a edil) é retomada com bombeiros, polícia na sua perseguição e um raio que o fulmina.

Oswald abre um grande parêntese entre estes dois momentos, colocando o ocorrido de V a VIII, do ponto de vista do protagonista, na condição de “acontecimentos (efemérides) desenrolados em ‘flasch back’” . A supressão do tempo narrativo convencional confere ao protagonista uma dimensão de intemporalidade mítica e uma capacidade de superar espaço e tempo.

No segundo movimento temos a radicalização das situações antecedentes. A transgressão da ordem, que observamos como elemento central desde o primeiro movimento, torna-se absoluta. A evocação memorial do herói enlouquece o pintor encarregado de retratá-lo (Errata X) e influencia Pinto Caçuldo, de volta ao romance, a instaurar uma “desordem perene” no El Durasmo (Antropófagos XI).

A viagem permanente, empreendida por uma tripulação em quarentena, suspende, definitivamente, o perigo de uma perseguição punitiva. Dessa forma, a nova contestação não recebe nenhuma sanção que restrinja seu impulso libertário.

A utopia de uma sociedade antropofágica livre e aberta adquire toda sua força graças à mobilidade constante.

Devemos notar que tanto Memórias Sentimentais de João Miramar como Serafim Ponte Grande desenrolam-se em torno do tema da viagem. Os personagens, João Miramar, cuja vocação pelo oceano evidenciasse pelo nome, e Serafim deslocando-se entre o novo e o velho mundo, buscam adquirir novas experiências, mas, acabaram tomando consciência de seus próprios valores e deficiências.

Nesse contexto, viajar torna-se um meio de conhecer e sentir o país. A identidade de uma nação ou de um indivíduo construída a partir do contato com o outro é um pressuposto que faz parte da nossa história. A alteridade, portanto, fornece um contorno mais nítido para nossos limites e, com isso, a possibilidade de superá-los. A translação mágica, de um ponto para outro muito distante, culturalmente, propícia revelações e descobertas fundamentais. Transfigurada pela distância, a imagem do Brasil ganha o matiz que faltava.

O constante movimento é ressaltado pela própria forma do romance, com sua prosa fluída, sua estrutura instável e seu caráter fragmentário. Os personagens/viajantes entram e saem das terras que surgem e passam rapidamente. A vida transitiva e sem compromissos dilacera toda a rotina burguesa. Serafim embarca em sucessivos navios que abandonam paulatinamente a realidade, penetrando nas águas da utopia .

Nesse sentido El Durasmo, o barco dionisíaco, simboliza a superação das normas e convenções, a liberdade de toda a tradição e permanência, através da incessante viagem e da recusa em desembarcar, isso porque, a terra firme configura, neste caso, a castração da criatividade humana e a impossibilidade da aventura de novas descobertas.

Este caráter antropofágico será recuperado, em novos termos, posteriormente, com a tese de Oswald de Andrade “A crise da Filosofia Messiânica” e numa série de artigos intitulada “A marcha das utopias”.

A cultura antropófaga e tecnológica, sob a égide do matriarcado, ou seja, livre das amarras da família, da propriedade, do Estado, das classes, na sua aspiração à felicidade social e ao ócio lúdico, e no seu inconformismo latente, pode ser compreendida, numa leitura frankfurtiana, como recusa dos valores utilitários de um mundo administrado.

Precisamos, por fim, analisar as implicações da antropofagia na obra de Oswald de Andrade e sua importância para a compreensão da realidade do Brasil.

ANTROPOFAGIA

Antonio Cândido chamou Serafim de “Macunaíma urbano”, isto porque existiria nessa obra “uma espécie de transposição do primitivismo para a escala da cultura burguesa” .

O elemento antropófagico surge em Macunaíma não somente porque penetramos numa dimensão etnográfica e mitológica, mas pela reintrepetação da nossa cultura urbana a partir de uma visão primitivista.

Já no Serafim o brasileiro urbano da era técnica, concebido pelo europeu como um bárbaro, encontra, como única possibilidade de sobrevivência diante do violento processo de modernização, o mergulho no universo mítico.

Apesar dos diferentes roteiros, pois o herói sem nenhum caráter parte do Amazonas e vai para São Paulo enquanto Serafim sai de São Paulo em direção à Europa e ao Oriente, as duas viagens acabam convergindo para um destino comum: o retorno ao mito. Com isso, Serafim e Macunaíma propiciam uma importante revisão dos valores nacionais.

Devorar culturas, imbricada na mobilidade do romance, pressupõe uma agressividade capaz de absorver a conduta burguesa, tritura-la e recompo-la. Cubistas, expressionistas, dadaístas e surrealistas tentaram, através da descoberta do primitivo, escapar das convenções do passado, dissolvendo as amarras impostas ao homem moderno pelo pensamento racional. Oswald irá elaborar o impulso primitivista da experiência vanguardista européia sob critérios próprios. No contexto social de transição, de uma realidade urbana em processo inicial de industrialização e, no entanto, vinculado, no plano cultural, aos cânones do passado, a antropofagia oswaldiana deve ser compreendida como uma tentativa de encontrar uma solução original para as contradições da sociedade brasileira.

No “Manifesto Antropofágico” (1928) temos o diagnóstico e a terapêutica para os dilemas vividos por um povo traumatizado pela colonização e pela repressão dos jesuítas. A catequese passa a ser o emblema do processo violento de civilização que nos foi imposto.

Entretanto, não se trata de puro e simples canibalismo. O paradigma de antropofagia que fascinou Oswald era o ritual tupi de imolação do inimigo valente apresado em combate, que se caracterizava sempre pela escolha do melhor. O inimigo, que pelos seus méritos, representasse o maior perigo para a sociedade era incorporado através do rito antropofágico. Ao deglutir a alteridade, de uma maneira física e espiritual, o guerreiro tupi tornava-se superior ao seu adversário:

“A luta entre o que se chamaria Incriado e a Criatura-ilustrada pela contradição permanente do homem e o seu Tabu. O amor quotidiano e o modus vivendi capitalista. Antropofagia. Absorção do inimigo sacro. Para transforma-lo em totem. A humana aventura. A terrena finalidade. Porém, só as puras elites conseguiram realizar a antropofagia carnal, que traz em si o mais alto sentido da vida e evita todos os males identificados por Freud, males catequistas. O que se dá não é uma sublimação do instinto sexual. É a escala termométrica do instinto antropofágico (…).Chegamos ao aviltamento. A baixa antropofagia aglomerada nos pecados de catecismo - a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Peste dos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela que estamos agindo. Antropófagos.” (ANDRADE, 1987, P.359.)

Podemos depreender que a antropofagia ritual compreende dois momentos. O primeiro é o da consciência do sagrado como entidade estranha e hostil ao homem. O tabu supremo nos deixa numa situação de inferioridade e, ao mesmo tempo, torna-se algo ardorosamente desejado. No segundo, temos a atitude devorativa pela qual o “selvagem”, num ato de vingança, assimila àquela diferença, que no primeiro momento parecia inacessível.

Este remédio para o problema da identidade nacional, afasta a apologia simplista e tola do particularismo cultural. A proposta de Oswald foge da xenofobia e busca uma síntese entre o arcabouço intelectual europeu e o amalgama das culturas indígenas e africanas. A síntese criativa do moderno com o arcaico, da cultura nativa com a cultura intelectual renovada, ratificaria nossa miscigenação étnica e forneceria a utopia necessária para a construção de nossa identidade bárbara.

BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Editora Globo, 1991.

ANDRADE, Oswald de. Serafim Ponte Grande. São Paulo: Global Editora, 1989.

ANDRADE, Oswald de. A Utopia Antropofágica. São Paulo: Editora Globo, 1990.

ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago” In: TELLES, Gilberto Mendonça. Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Record, 1987.

CAMPOS, Haroldo. “Serafim: um grande não livro” In: Serafim Ponte Grande. ANDRADE, Oswald de. São Paulo: Global Editora, 1989.

CÂNDIDO, Antônio. “Dialética da malandragem” In: O discurso e a cidade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1993.

CÂNDIDO, Antônio. “Estouro e Libertação” In: Vários Escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995.

CÂNDIDO, Antônio. “Oswald Viajante” In: Vários Escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995.

CÂNDIDO, Antônio. “Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade” In: Vários Escritos. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1995.

Marques Nunes
Enviado por Marques Nunes em 03/08/2009
Reeditado em 11/08/2009
Código do texto: T1734145
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